Assistente social e professora aposentada, Beatriz Herkenhoff se descobre escritora aos 65 anos: “Eu vivo o aqui e o agora com intensidade”

Mariana Guerin

Fotos: Arquivo Pessoal

Maria Beatriz Lima Herkenhoff acaba de se descobrir escritora, aos 65 anos. Só por isso sua história já desperta curiosidade em quem lê suas crônicas sobre amor, que ela passou a publicar na Rede Lume despretensiosamente há alguns domingos. Mas há tantas nuances em sua trajetória, escondidas nas entrelinhas de seus textos, que decidi investigar: quem é Beatriz?

Nascida em Cachoeiro de Itapemirim, no Espírito Santo, ela é a mais velha de três irmãos e foi criada com a ajuda dos avós maternos depois que a mãe ficou viúva com apenas 28 anos. “Eu tinha seis anos, meu irmão quatro e minha irmã dois. Com a perda do meu pai fomos morar com meus avós maternos. Uma casa grande, com quadra de vôlei e futebol, com jardins, pomar, balanços e um orquidário.”

“Crescemos de forma livre, brincando com as crianças da vizinhança e com os primos. Eu tinha 64 primos do lado paterno e seis primos do lado materno. Meus avós paternos tinham uma escola e nós crescemos nesse espaço, como se fosse a nossa casa”, recorda Beatriz.

Ela lembra que a criançada se reunia para brincar de pique, de casinha, de cozinhar, de subir em árvores, tomar banho de chuva, tocar a campainha dos vizinhos, entre outras bagunças. “Uma vida com muita alegria. Meus avós diziam que criança que é criança tem que fazer bagunça. E minha mãe sempre gostou de teatro e envolvia a criançada em pequenas peças teatrais, esquetes animadas e engraçadas.”

Sua adolescência também foi “maravilhosa”, graças a um grupo de jovens criado pela mãe dela chamado Comunidade de Amizade Cristã, o CAC, que durou mais de 15 anos. “Nesse grupo éramos envolvidos em ações sociais, campanhas do agasalho, visita a casas de idosos, abrigos de crianças e adolescentes.”

“Todos os domingos tinha jogo de vôlei lá em casa, com uma média de 60 jovens. Momento intenso de convivência saudável. Minha mãe também organizava almoços comunitários e festas juninas com esses jovens. Fazíamos também viagens para passar o dia em cidades litorâneas e sítios”, cita Beatriz, lembrando ainda das peças teatrais “A bruxinha Que era Boa”, de Maria Clara Machado, e “Morte e vida Severina”, de João Cabral de Melo Neto, dirigidas pela mãe com a participação dos jovens do CAC e de alguns primos da família.

“Cresci numa casa aberta, lotada de jovens que por lá circulavam. Também frequentávamos o clube Jaraguá, com bailes e banhos de piscina. Passávamos os meses de dezembro, janeiro e fevereiro nas cidades litorâneas de Marataízes e Guarapari. Experiências fantásticas de convivência em família e com grupos de amigos. Nessa época tínhamos grandes paixões platônicas. Às vezes, quatro amigas eram apaixonadas pelo mesmo rapaz. E tudo era uma festa”, brinca.

No Ensino Médio, Beatriz passou a frequentar uma escola pública e a conviver com uma turma de alunos muito unida. “Frequentávamos as casas dos amigos para lanchar, estudar, ver jogo do Brasil ou simplesmente conversar e gargalhar. Fizemos algumas viagens juntos.”

“O irmão mais velho de uma das amigas tinha uma Kombi. Pelo menos uma vez por semana íamos passear nessa Kombi, parávamos num jardim da cidade para tocar violão, cantar e dar boas gargalhadas.”

“No ano do vestibular, não fizemos cursinho, estudamos entre nós. Quem era bom de matemática dava aula para os demais, a mesma coisa acontecia com quem era bom de português, ciências, história e inglês. O resultado é que mais de 90% da turma passou no vestibular, a maioria na Universidade Federal do Espírito Santo (UFES)”, conta.

“Construímos uma história com raiz, com identidade, muito amor e solidariedade. Nos reencontramos 30 anos depois e tudo voltou a ser como era antes, viramos adolescentes. E o legal é que as esposas foram incluídas no grupo. Fazemos duas festas por ano. Momento alegre esperado por todos”, comemora Beatriz.

Segundo ela, foi a experiência com o grupo de jovens que influenciou sua escolha profissional. “Naquela época fui muito sensibilizada para o social e a dinâmica do grupo preparava os jovens para a liderança. Isso influenciou muito o meu jeito como professora universitária. A solidariedade entre os amigos para passar no vestibular, mostrou que a cooperação fala mais alto do que a competição”, avalia a assistente social, que se aposentou como professora do curso de Serviço Social da UFES.

Outra experiência que também marcou muito sua juventude foi um namoro longo. “Uma convivência saudável, alegre, intensa, amorosa, com muita cumplicidade, identidade e companheirismo. Passei a acreditar na minha potência para amar e ser amada”, confessa.

Desde que se aposentou, em 2012, Beatriz decidiu não atuar mais como professora. “Desliguei-me do mestrado, não aceitei convites para dar aulas em universidades particulares, nunca mais participei de bancas de defesa de dissertações ou teses.”

“Qualquer um desses compromissos exigiria de mim um envolvimento permanente com o ensino. Fui uma professora intensa, amorosa, responsável, organizada, participava de núcleos de pesquisa e de extensão, articulando o compromisso da universidade com a sociedade. Dei o melhor de mim, acredito ter feito a diferença na vida dos estudantes, por isso decidi administrar o meu tempo livre de forma prazerosa”, justifica.

Sua rotina, então, passou a incluir idas ao cinema três vezes por semana e muitas viagens pelo Brasil e exterior. “Passei a desfilar na Escola de Samba Piedade. Formamos um grupo de sete amigos, o Bora, para dançar forró, ir ao cinema ou barzinho. Formamos um grupo de seis amigos e passamos a viajar no carnaval, em lugares que uniam passeios impactantes durante o dia, com carnaval com marchinhas animadas à noite.”

“Formamos um grupo de cinco amigas e passamos a ter um café com prosa uma vez por mês. Passei a viajar três vezes por ano para Salvador, onde meu filho mora. Articulei vários grupos de encontros semestrais, com os amigos do científico, do serviço social, das mães da Monteiro Lobato, escola onde nossos filhos estudaram. Já tinha um grupo de espiritualidade chamado Comunidade Ambiental, que se reúne de 15 em 15 dias. Formamos um grupo do Flamengo, para assistir futebol toda quarta-feira num bar”, descreve.

“Passei a agendar encontros permanentes com amigas e amigos para cultivar a amizade. Também estreitei a convivência familiar. Durante a pandemia, fiquei dois anos dentro de casa e vi 400 filmes com minha mãe. E nessa dinâmica de liberdade e criatividade nasceu a escritora que sou hoje”, resume Beatriz.

Se você pensa que a história acabou, engana-se. Sentindo-se “plena e realizada” em todas as áreas da sua rotina atribulada, “ser mãe foi uma das maiores dádivas” que ela recebeu. “Sempre brinquei com meu filho e fui criativa em todos os estímulos. Amamentei até ele completar dois anos. Ao mesmo tempo em que a amamentação criou um forte vínculo de amor, junto com o pai de Stefano demos raízes para o seu crescimento e, ao mesmo tempo, asas para voar. Construímos uma relação de amor, respeito, diálogo, autonomia e liberdade”, diz.

“Também fui muito plena como tia, madrinha e na convivência com todos os jovens que inclui no meu cotidiano. Construí relações de amizades que duram 40 anos”, completa.

Militância e comprometimento com um mundo mais justo

Sua carreira como assistente social teve início nos anos 1970. Por três anos, ela trabalhou no Hospital Adalto Botelho, em Vitória, onde havia um alto índice de pacientes com doenças crônicas.

“A equipe do serviço social junto com um grupo de psicólogos e psiquiatras conseguiu fazer um trabalho diferenciado, na lavoura, com arteterapia e jogos lúdicos. Até então, a ala dos homens não se misturava com a ala das mulheres. Começamos a comemorar os aniversários uma vez por mês com a participação de todos, inclusive com danças. Momentos muito alegres. Esse trabalho teve muitos resultados positivos.”

Em sua passagem pela Vale do Rio Doce, entre 1979 e 1989, a equipe de serviço social conseguiu resultados significativos no trabalho com dependência química, com doenças psíquicas e emocionais. “Fizemos uma formação em clínicas especializadas e envolvemos gerentes, supervisores e familiares para uma abordagem conjunta. Eu era uma assistente social de chão de fábrica, não ficava trancada em minha sala, e consegui fazer um trabalho diferenciado em várias áreas.”

“Depois fiz concurso e trabalhei como professora do curso de serviço social de 1989 a 2012. Tendo Paulo Freire como referência, sempre estabeleci uma relação de diálogo com os estudantes, possibilitando vivências concretas em sala de aula e continuei assessorando os movimentos sociais por meio de um projeto de extensão”, cita Beatriz.

Para ela, o curso de serviço social é pautado por “um projeto ético e político, comprometido com a justiça, a igualdade social, os direitos humanos e sociais, a inclusão social e a garantia de processos democráticos. Por isso esses valores fazem parte da minha existência”.

“Estou aposentada profissionalmente, mas o comprometimento com um mundo mais justo, com a sobrevivência do nosso planeta, com a proteção dos povos originários, com a luta contra todo tipo de preconceito, violência e discriminação fazem parte do meu dia a dia”, reforça a assistente social, que desde 2018 participa do grupo Democracia Sim.

“Junto com o Coletivo de Estudos de Conjuntura e outros grupos temos realizado debates sobre a conjuntura política e social, construindo estratégias de resistência. Durante a pandemia tenho participado também de muitas ações de solidariedade. Não podemos ficar indiferentes a tantas atrocidades e desmontes”, ensina.

Beatriz também é “muito feliz e grata” por sua militância política no município de Serra (ES), entre o final dos anos 1970 até os anos 1990. “Participei da criação do PT. Sem vínculo partidário, formamos uma comissão que assessorou os movimentos sociais.”

“Na ocasião, foram criadas 30 associações de moradores e a federação das associações de moradores, com lutas que alcançaram muitas conquistas como: regularização dos bairros, saneamento básico, iluminação elétrica, construção de escolas, de postos de saúde, de um hospital etc.”, conta.

Uma grande surpresa foi ter se tornado escritora, na aposentadoria. “Sem esforço, sinto-me inspirada a escrever sobre temas diversos. E o mais importante são os diálogos emocionantes que as pessoas realizam após cada publicação. Estou crescendo muito com essas interações.”

Em 2021, ela publicou o livro de crônicas “Por um triz: crônica sobre a vida em tempos de Pandemia”, que foi lustrado pelas aquarelas da irmã dela, Heloísa. Para este ano, pretende concluir o segundo livro “Legados: crônicas sobre a vida em qualquer tempo”, com fotografias do amigo Carlos Monteiro. “Realizei muito mais do que sonhei.”

Minha última pergunta para Beatriz foi: se pudesse se descrever em uma frase, qual que seria? “Eu vivo o aqui e o agora com intensidade, generosidade, solidariedade, sensibilidade, indignação, resistência, amor, gratidão e alegria.” Mais que uma resposta, é um ensinamento!

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3 respostas para “Da militância política às crônicas sobre o amor”

  1. Avatar de Maria de Fátima Herkenhoff V.Rocga
    Maria de Fátima Herkenhoff V.Rocga

    Uma lição de vida em plenotude

  2. Como é gratificante e prazeroso saber um pouco mais sobre você, o que eu sabia já era o suficiente para admirá-la, agora eu tenho mais motivos para agradecer a Deus por ter nos apresentado.

  3. Linda história de vida! Parabéns!

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