Por Beatriz Herkenhoff*

Foto em destaque: Pexels

Perder o pai quando tinha seis anos, levou-me a amar de forma limitada. Ao ter medo de ser abandonada, dava mais do que recebia, e acabava entrando em relacionamentos para “salvar o outro em sua história de vida”. Claro que esse jeito de amar, acabou me machucando, e em muitos casos gerando o que eu mais temia: o sentimento de rejeição.

Temos uma tendência a reproduzir o amor que recebemos ou que não recebemos. Entretanto, muitos foram abandonados e conseguiram dar a volta por cima e amar lindamente.

Teve momentos em minha vida em que a carência conduziu a minha forma de amar. E isso é muito perigoso. Envolver com o outro a partir de nossas carências pode causar graves problemas para nós mesmos. 

O aprendizado do amor próprio

Todas essas experiências de amor e desamor levaram-me a buscar terapia antes de ser mãe. A ajuda profissional foi fundamental para eu estabelecer com meu filho uma relação de amor na dinâmica da gratuidade e da liberdade. Criamos raízes e asas para voar.

Descobri também que eu não posso amar o outro se eu não me amo. Quando eu me coloco em primeiro lugar, assumo um compromisso ético com meus sonhos e desejos. Consequentemente, responsabilizo-me por minhas decisões. O outro deixa de ser o responsável pela minha felicidade ou infelicidade. E isso faz toda diferença.

Aprender a me amar não foi algo simples. Mergulhar em minhas misérias assustou-me e por isso continuei vivendo durante um período na superficialidade do meu eu.

Em momentos em que me senti paralisada diante de minha história, a terapeuta me disse: “se você está numa estrada e encontra um atoleiro, sente vontade de fugir, mas, ao enfrenta-lo sai fortalecida. É mais fácil tomar um banho de cachoeira e deixar sair a sujeira do atoleiro do que ficar convivendo com seus fantasmas indefinidamente”.

E foi isso que eu fiz. Vivi um longo processo de terapia para aperfeiçoar meu modo de ser e estar no mundo. Após cada mergulho no meu eu, tomei muitos banhos de cachoeira e de mar, deixando sair tudo que prendia e oprimia.

Desconstruindo a imagem de Deus

Como sou uma pessoa de fé, sinto-me limitada em minha capacidade de amar, por isso permito que Deus manifeste seu amor através de mim.

E como sei se sou instrumento desse amor? Quando as minhas escolhas geram vida, quando produzo frutos do bem, quando toco o outro com minhas atitudes, mais do que com o meu discurso.

Se eu soprar vida por onde passar é porque o Espírito de luz me conduz.

Mas, para chegar nesse nível de relação com Deus, também tive que desconstruir muitas imagens de Deus. Visto até então como um Deus castigador, controlador, que tudo vê e que está sempre apontando o dedo para minhas contradições e erros.

Conheci um Deus amoroso, que me ama e aceita como eu sou. Um Deus que perdoa ilimitadamente. Que dá uma festa cada vez que um filho pródigo volta para casa. Um Deus que não é negociante, por isso, não exige trocas para me dar algo. Tudo dá na dinâmica do amor.

Essas descobertas foram transformadoras. Sentir-me instrumento de Deus em cada palavra vivida, pronunciada ou escrita mudou o rumo da minha vida.

A vivência do amor pleno

Nessa dinâmica, fui convidada a viver com simplicidade e desprendimento. Provocar serenidade, alegria, harmonia e paz em todos os espaços que ocupo. Sair da onipotência para amar em plenitude. Um amor com menos controle, expectativas e cobranças.

Como sou humana, preciso perguntar com frequência se a minha presença causa desconforto, medo e ansiedade, se sou intolerante, entre outras limitações. Dialogar com as sombras que existem em mim é uma forma de enfraquecê-las.

Por essas razões, tenho amado muito! Amado intensamente!

E essa permissão para experimentar o amor em suas diferentes formas e nuances tira o foco de um único amor. Estou vivenciando o amor erótico, materno, filial, de tia, de madrinha, de irmã, de sobrinha, de amiga, de militante comprometida com um país mais humano e democrático. Partilhando o amor com diferentes idades: com crianças, adolescentes, jovens, adultos e idosos.

Mas, o amor só tem sentido se ele extrapola as paredes do meu eu. Se ele se expande para a coletividade, para aqueles que vivem cotidianamente a injustiça, o desemprego, o abandono, a pobreza, a miséria, o desrespeito aos seus direitos humanos e sociais.

Como afirma Clarice Lispector: “Sabe o que quero de verdade? Jamais perder a sensibilidade, mesmo que às vezes ela arranhe um pouco a alma. Porque sem ela, não poderia mais sentir a mim mesmo”.

Nossa passagem por esse planeta perde o sentido se não nos sensibilizamos com a dor do outro, se não partilhamos os dons que recebemos.

Somos convidados a ter, no dia a dia, gestos concretos de solidariedade, de amor, de serviço ao próximo. Se muito recebemos, somos convidados a muito dar.

Tudo que escrevi sobre o cuidado nas relações afetivas, amorosas, sociais, culturais, familiares, espirituais, perde o sentido se vivemos de forma egoísta, individualista, buscando apenas a realização pessoal.

O que construo ao meu redor deve refletir na qualidade de vida do nosso planeta, na construção de um mundo mais humano, igualitário e justo.

Gostaria de encerrar convidando-os a ouvir “Eu só peço a Deus “ (compositor León Gieco) interpretada por Mescedes Sosa:

“Eu só peço a Deus
Que a dor não me seja indiferente
Que a morte não me encontre em um dia
Solitário sem ter feito o que eu queria.”

A forma como amo possibilita que eu faça a diferença nesse mundo? E vocês? Como estão amando?

Que possamos ir além, sempre além…

*Beatriz Herkenhoff é assistente social. Professora aposentada do Departamento de Serviço Social da UFES. Com doutorado pela PUC-SP. Autora do livro: “Por um triz: Crônicas sobre a vida em tempos de pandemia” (2021).

9 respostas para “O amor transforma e liberta”

  1. Excelente texto sobre o tornar-se o que verdadeiramente se é, em essência! Pois, em essência, nascemos para viver o amor pleno por nós e pelos outros.

    1. Gratos pela visita, Durval.

    2. Avatar de Maria das Gracas Lemos Andreatta
      Maria das Gracas Lemos Andreatta

      É, Beatriz concordo com a beleza do texto e sua profundidade. Conhecê-la um pouco mais só aumenta a admiração e respeito

  2. Avatar de Maria Anita Falcão de Oliveira
    Maria Anita Falcão de Oliveira

    Quanta coragem minha querida e amada amiga, por a público suas fragilidades de forma tão serena e amorosa contigo mesma. Você é uma das pessoas mais incríveis com quem eu tenho a alegria de compartilhar minha existência. Você me inspira. Parabéns!

    1. Também estamos sendo inspirados pela Beatriz, Maria. Obrigada pela visita.

  3. Avatar de MARIA BEATRIZ LIMA HERKENHOFF
    MARIA BEATRIZ LIMA HERKENHOFF

    Gratidão Durval e Maria Anita, o feedback de vocês me inspira a ir sempre, Beatriz

  4. Que lindo amiga cada crônica uma descoberta, um mergulho na vida, como você é incrível, consegue transporta para lugares que sonhamos acordados , você me surpreende a cada leitura🌻

  5. Avatar de Rosini HPGurgel
    Rosini HPGurgel

    Texto maravilhoso, corajoso , libertador , fiquei emocionado !Obrigada por partilhar !

    1. Obrigada pela visita, Rosinei.

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