Por Beatriz Herkenhoff*
Foto em destaque: Pixabay
Na crônica “O amor não coloca limites” refleti sobre as razões que levam mulheres a não romper com o ciclo de violência doméstica.
Tendo como referência Robin Norwood identifiquei a face negativa e destrutiva dos relacionamentos, quando as mulheres se submetem a relações tóxicas e doentias porque amam demais. Têm medo do abandono e não percebem que estão abrindo mão de seus projetos e colocando suas vidas em risco.
Para escrever esta crônica conversei com uma ativista da Articulação de Mulheres Brasileiras (AMB) cujas lutas prioritárias são pelo fim da violência contra as mulheres. Entrevistei também assistentes sociais que trabalham nas redes públicas de proteção às mulheres.
Sobre a organização da sociedade civil
A AMB surgiu em 1994 e teve papel fundamental na mobilização que originou a lei 11340/2006, batizada de lei Maria da Penha (LMP).
Representantes da Articulação de Mulheres Brasileiras consideram que a violência contra as mulheres são atravessadas pelo machismo, pela LGBT fobia, pelas desigualdades raciais e de classe. Por isso, enfrentar a violência exige a análise de como as estruturas de dominação contra a mulher se articularam ao longo de nossa história. Exige também a expansão das redes socioassistenciais de acolhimento e proteção às mulheres em situação de violência, bem como, o cumprimento da Lei Maria da Penha, com punição aos agressores.
A AMB desenvolve lutas para garantir direitos perante o Estado. Realiza pressão nas diferentes instâncias do poder público para assegurar os recursos necessários para implantação do que está previsto na lei. Realiza formação com mulheres divulgando a LMP, promovendo ações de rua para tornar visível a tragédia da violência contra as mulheres no Brasil.
Um pouco sobre a abordagem do CRAMSV
As entrevistadas relatam que as mulheres chegam fragilizadas ao CRAMSV (Centro de Referência em Atendimento às Mulheres em Situação de Violência). Carregam um sofrimento atroz e marcas da sua dor no corpo. Sentem-se sós, não têm com quem conversar, com quem dividir seu mundo que está desmoronando.
Ao buscar ajuda a cabeça da mulher está em ebulição, pergunta-se: “será o fim do casamento? Ele será preso? Se isso acontecer, como ficará minha situação com os filhos? Como irei sustenta-los? Como vou pagar as contas?”
Os profissionais procuram acolher, ouvir, respeitar, apoiar, não julgar e compreender. Contribuem para que possam tomar decisões.
De acordo com as entrevistadas, quando as mulheres são ouvidas, sentem-se valorizadas. Percebem que não têm amor próprio, que colocam o outro em primeiro lugar. Quando são olhadas nos olhos nasce a esperança, a segurança e a confiança para buscar mudanças.
A indiferença e o julgamento bloqueiam a possibilidade de voar e arriscar.
Esse espaço de acolhimento é fundamental porque ninguém quer ouvir a dor de ninguém. Familiares não querem se envolver. Por isso a escuta faz muita diferença.
No acolhimento recebem orientação sobre direitos, o que é a violência, as consequências para elas, para a família e para o autor da violência. Vêm possibilidades de sair do ciclo da violência. Aos poucos tomam decisões sobre denunciar, receber medida protetiva, separar, pedir o divórcio, entre outras.
Decisões difíceis, pois o vinculo com o agressor é forte. Vivem o dilema entre romper com o parceiro ou desejar que ele mude. Por isso muitas vezes, optam por dar um susto para que eles parem de agredir.
Dependendo do homem, quando alguém penaliza eles recuam. Mas, nem todos mudam, pelo contrário, a violência pode intensificar.
Por isso o acompanhamento psíquico e social é essencial. É preciso trabalhar as razões que levam à codependência e a relações doentias.
Um complicador é o fato de não existir um centro de atendimento social e psicológico para os homens. Serviços que poderiam ajuda-los a mudar de atitude ao identificar comportamentos enraizados, bem como, feridas psíquicas e emocionais abertas.
Uma alternativa seria a oferta de grupos para que os homens pudessem partilhar suas razões e dificuldades. Espaços para repensar o papel do homem e a visão da mulher como objeto. Concepções construídas socialmente tendo como referência o patriarcado e o machismo.
A violência acontece também pelo uso de substâncias psicoativas. Existem centros de atendimentos para tratamento de dependência química e também ambulatórios vinculados à rede pública. Serviços necessários ao processo de ajuda.
Alguns recursos são oferecidos para as mulheres, como: cesta básica, cursos de capacitação para o trabalho. Caminhos para voltar a estudar, trabalhar, gerar renda, não depender de outras pessoas para ser feliz.
Quando passam a receber um benefício, o impacto financeiro pode ser minimizado. É um apoio importante para recomeçarem.
Mulheres em situação de violência geralmente desconhecem os serviços, equipamentos e procedimentos da rede de atendimento. Vamos fala sobre isso a seguir.
Quem compõe a rede de apoio às mulheres vítimas de violência doméstica?
Os Centros de Referências em atendimento às mulheres em situação de violência (CRAMSV) tornam-se uma importante porta de entrada com apoio psicossocial e jurídico para o fortalecimento da mulher.
As delegacias das mulheres são unidades especializadas da Polícia Civil para atendimento à mulher em situação de violência de gênero, onde se faz a denúncia, solicita as medidas protetivas e são abertos os inquéritos.
Juizados e varas especializadas são instituições especializadas, criadas pela Lei Federal Maria da Penha (nº 11.340/2006), com competências cível e criminal para conhecer e julgar as causas decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher. Na área da justiça conta-se ainda com os Ministérios Públicos e as Defensorias Públicas.
Em casos em que a mulher corre risco de vida conta-se com as casas abrigos.
Na assistência social também há suporte, através dos Centros de Referência de Assistência Social (CRAS) e dos Centros de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS).
Quem mais compõe a rede? Unidades de saúde, hospitais, prontos atendimentos e os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), com atendimento psicossocial vinculado à saúde mental.
Centros de Referências
Os centros de referências são estruturas essenciais do programa de prevenção e enfrentamento à violência contra as mulheres, uma vez que visa promover a ruptura da situação de violência e a construção da cidadania por meio de ações globais e de atendimento interdisciplinar (psicológico, social, jurídico, de orientação e informação) à mulher em situação de violência.
Constatei durante as entrevistas que os profissionais amam o seu trabalho. Identificam-se com os desafios cotidianos e têm um comprometimento com as mulheres.
Os técnicos desses serviços dialogam permanentemente, realizam reuniões e trabalhos conjuntos, com vistas a exercer o papel de articuladores dos serviços que integram a rede de proteção.
Apesar de todo esforço e envolvimento, profissionais que atuam nas redes de proteção sentem-se impotentes em muitos momentos por não existir programas de geração de emprego e renda, programas habitacionais e de aluguel social, entre outros que dariam às mulheres um suporte e segurança para denunciar e romper com o abusador.
Fui convidada para a comemoração dos 16 anos do CRAMSV. Vou relatar essa experiência na próxima crônica. Vivi momentos de muita emoção e ouvi testemunhos que mostram como o amor transformou a vida de muitas mulheres.
Enquanto aguardam, pensem sobre que atitudes podemos desenvolver para romper com a violência contra as mulheres. Como levar esses conhecimentos para os espaços onde circulamos?
*Beatriz Herkenhoff é assistente social. Professora aposentada do Departamento de Serviço Social da UFES. Com doutorado pela PUC-SP. Autora do livro: “Por um triz: Crônicas sobre a vida em tempos de pandemia” (2021).
Deixe uma resposta