Por Beatriz Herkenhoff*
Foto em destaque: Pexels
Tive o privilégio de ser convidada para a comemoração dos 16 anos do CRAMSV – Centro de Referência em atendimento às mulheres em situação de violência.
Fiquei muito emocionada quando cheguei ao local. Tudo lindamente decorado com bolas e mensagens de boas vindas.
No palco um cartaz gigante com os dizeres: “Em briga de marido e mulher todo mundo pode e deve meter a colher”.
Foi uma comemoração criativa, afetiva, alegre e acolhedora. Auditório lotado com representantes das redes de atendimento: Delegacia da Mulher, Núcleo de Estudos de Prevenção à Violência, Juizados e Varas Especializadas, Ministérios Públicos e Defensorias Públicas, Promotoria da Mulher, Casa de Acolhimento, Casa Rosa, Tribunal de Justiça e advogada especializada na Lei Maria da Penha.
Mas a presença principal foi das munícipes, mulheres em situação de violência atendidas pelo CRAMSV.
Ao todo, vinte mulheres e algumas crianças. A maioria já é acompanhada pelo CRAMSV há mais de um ano, muitas há seis anos ou mais. Muita emoção e choro ao falar de suas conquistas e superações.
Todas lindas! Maquiadas e com roupas em tons alegres. Cada uma que chegava era uma festa, muitos abraços e amor circulando. Para mim, que visitava pela primeira vez uma rede de atendimento às mulheres em situação de violência, era visível as mudanças e conquistas realizadas pelas mulheres. Principalmente, por tudo que eu já tinha ouvido de como chegavam destruídas no momento em que buscavam ajuda.
Foi uma comemoração simples, mas intensa, forte, densa, plena de símbolos e significados. A música foi intercalada com as apresentações de cada uma. Teve poesia e eu li uma crônica. Teve bolo e parabéns. Um delicioso lanche.
Bruna, uma das munícipes, nos envolveu com músicas que falam da beleza da mulher, de sua capacidade para romper e colocar limites. Músicas que denunciam os maus tratos e apontam caminhos de mudança.
Fui muito tocada, não contive as lágrimas, deixei que rolassem. Aí de mim se bloqueasse minha sensibilidade e se não me colocasse no lugar de cada uma.
Com a palavra as mulheres
Após a coordenadora dar as boas vindas e falar do CRAMSV. Bruna cantou Maria, Maria de Milton Nascimento. Todas vibraram e cantaram. Que você possa cantar também ao ler essa crônica.
“Maria, Maria É um dom, uma certa magia, uma força que nos alerta. Uma mulher que merece viver e amar como outra qualquer do planeta. Maria, Maria é o som, é a cor, é o suor é a dose mais forte e lenta de uma gente que rí quando deve chorar e não vive, apenas aguenta. Mas é preciso ter força, é preciso ter raça, é preciso ter gana sempre. Quem traz no corpo a marca Maria, Maria mistura a dor e a alegria.”
Intercalando com músicas, as mulheres foram testemunhando suas histórias:
“Esse equipamento transformou a minha vida. Fui acolhida, apoiada e fiz rupturas. Voltei a estudar, estou no sexto período de turismo.”
“Vocês são meus anjos da guarda. Não me abandonam, estão ao meu lado nas horas mais difíceis. Por isso pude tomar decisões que mudaram o rumo de minha vida.”
“Sinto-me tão bem aqui que às vezes venho só para visitar. Saio renovada sempre.”
“Chegamos aqui fragilizadas porque alguém quebrou nossa confiança. Fomos recebidas com muito amor e voltamos a acreditar em nossa potência.”
“Cheguei aqui desesperada. Fui acolhida e aprendi a não normalizar atos e atitudes de violência. Só tenho a agradecer.”
Mais uma música falando do medo, dos riscos e da busca por coragem e proteção.
Deus Me Proteja
Chico César, Dominguinhos
“Deus me proteja de mim e da maldade de gente boa
Da bondade da pessoa ruim
Deus me governe e guarde ilumine e zele assim.”
Mais depoimentos e em seguida Bruna cantou Sá Marina, de Wilson. Cada frase soou como uma permissão para a autoaceitação, a valorização de si e o aprendizado do amor próprio.
“Descendo a rua da ladeira
Só quem viu que pode contar
Cheirando à flor de laranjeira
Sá Marina vem pra dançar
De saia branca costumeira
Gira ao Sol que parou pra olhar
Com seu jeitinho tão faceira
Fez o povo inteiro cantar.”
Com a palavra os profissionais da rede de atendimento e proteção às mulheres
Dando continuidade, muitos depoimentos fortes sobre a importância do CRAMSV, Assistentes Sociais, Psicólogas, Advogadas, Juristas, Magistradas, Promotoras, Defensoras Públicas. Todas envolvidas na Rede de apoio ao enfrentamento à violência doméstica.
Reafirmaram a importância do Poder Público investir no CRAMSV para que o serviço seja potencializado.
“A maioria das mulheres atendidas por nós são negras e pobres. Estão mais sujeitas à violência, têm menos acesso aos recursos e sofrem a discriminação e o preconceito da sociedade.”
“Ao comemorar os 16 anos do CRAMSV, voltamos no tempo para relembrar tanto as experiências de superação como outras frustrantes. Muito crescimento e aprendizado como profissional.”
“Amo o que faço. Amo abraçar cada mulher, ouvir, acolher, orientar, articular os recursos, observar sua transformação e empoderamento.”
“Quero tirar o chapéu para o CRAMSV. Nesses 16 anos foram 23.000 atendimentos realizados. Isso fez a diferença na vida de muitas mulheres.”
Elza Soares utilizou a música como arma contra a violência doméstica. E Bruna arrasou, cantando Maria da Vila Matilde.
Maria da Vila Matilde,
“Cadê meu celular?
Eu vou ligar prum oito zero
Vou entregar teu nome
E explicar meu endereço
Aqui você não entra mais
Eu digo que não te conheço
E jogo água fervendo
Se você se aventurar.”
A arte foi acionada como um recurso poderoso de denúncia e esperança. Madu, representando o projeto Omodê (Difusão da cultura e arte afro) fez uma belíssima performance declamando uma poesia sobre a mulher em situação de violência.
Mais uma música que fez refletir e apontou para possibilidades de mudanças
Todxs Putxs
A Banda Mais Bonita da Cidade, Ekena
“Quem ‘cê tá pensando que é?
Pra falar que eu sou louca
Que a minha paciência anda pouca pra você
Para de vir me encher
Quem ‘cê tá pensando que é?
Pra falar da minha roupa
Do jeito que eu corto o meu cabelo
Se olha no espelho
Você não anda valendo o esfolado do meu joelho esquerdo.”
Muitos são os obstáculos e as omissões em relação às mulheres em situação de violência. O Estado não criou as condições necessárias para o cumprimento da lei Maria da Penha. Em muitos municípios do Brasil a rede socioassistencial é frágil ou inexistente.
Mas, temos que divulgar os avanços e as conquistas para que as rede de apoio sejam fortalecidas e se multipliquem.
Existem movimentos sociais de mulheres que lutam pela garantia de seus direitos e cumprimento da lei Maria da Penha e das medidas protetivas. Grupos que realizam formações para as mulheres e denúncias sobre a violência. Ações imprescindíveis para o fim da violência contra as mulheres.
Antes do lanche, todas levantaram para cantar e dançar ao som da música Anunciação (Alceu Valença).
“A voz do anjo sussurrou no meu ouvido. Eu não duvido já escuto teus sinais. Tu vens, tu vens. Eu já escuto teus sinais.”
Sinais de esperança, de vida nova, de amor em abundância, de liberdade e de transformação. Sinais de um Brasil mais respeitoso, democrático, menos preconceituoso e menos violento.
Que as mulheres possam viver com liberdade e muito amor. Pelo fim das agressões e do feminicídio. Pelo fortalecimento dos movimentos de mulheres e das redes socioassistenciais.
*Beatriz Herkenhoff é assistente social. Professora aposentada do Departamento de Serviço Social da UFES. Com doutorado pela PUC-SP. Autora do livro: “Por um triz: Crônicas sobre a vida em tempos de pandemia” (2021).
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