Por Beatriz Herkenhoff e Jeane Ferraz*

Foto em destaque: Pexels

A experiência da maternidade e da paternidade é uma das mais significativas em termos de um amor que desabrocha com força e nos surpreende. Um amor incondicional que nos vira do avesso e nos leva a dar o melhor de nós como seres humanos.

O período da gravidez foi um dos mais potentes em minha vida. Senti-me linda, plena e feliz. E sei que a maioria das mulheres também têm sentimentos semelhantes. E quando o filho tão esperado nasce com uma síndrome? Que sentimentos predominam? Que pensamentos? O sofrimento e a dor são imensuráveis, mas, geralmente, nasce também uma história de conquistas e superações.

Convidei Jeane Ferraz para escrever esta crônica comigo porque ela tem muito a nos contar sobre sua experiência. Acompanhei o nascimento de Heitor (hoje com 16 anos) e aprendi muito com Jeane e Darcy. Diria que minha vida foi transformada na convivência com eles.

Eu e Jeane trabalhamos no Departamento de Serviço Social da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes). Sempre identifiquei-me com seu jeito de ser, mas, criamos laços profundos em 2005 quando Jeane e Darcy engravidaram. Foi uma linda gravidez, alegre, desejada, planejada e tranquila. Heitor foi esperado com muito amor. A barriga de Jeane foi curtida e paparicada diariamente por familiares, amigos/as e alunos/as da Ufes.
Ao completar oito meses, o ultrassom indicou que o bebê estava pequeno, 30 dias depois, o bebê tinha engordado pouco e estava em sofrimento fetal. A cesariana foi feita imediatamente.

Com a palavra Jeane:

“Nunca poderia imaginar que isso iria acontecer. Descobri que a vida nos surpreende e que não temos o controle de nada. Meu marido acompanhou o Heitor quando nasceu. Eu só pude vê-lo tarde da noite. Quando entrei na UTIN, vi meu filho, achei um bebê estranho, pequenininho. Tive alta do hospital e comunicaram que Heitor ficaria. A geneticista iria fazer um exame porque tinha suspeita de que era uma síndrome.”

“Foi a pior notícia que poderia receber em minha vida. Eu chorava e perguntava para minha irmã: Por que eu? Por que eu? Depois mudei a pergunta: Por que não eu? Por que eu não poderia ter um filho assim?”

“Decidi ir para o hospital todos os dias e ficar o tempo todo com meu filho. Com sete dias, Heitor ficou muito grave e teve que fazer uma cirurgia para fechar o canal que liga os lados do coração. Um pouco antes da cirurgia, uma enfermeira experiente colocou Heitor em meu colo e de Darcy (três horas com cada um). Não era permitido esse procedimento com o bebê entubado, mas, ela furou o protocolo. Foi a sensação mais emocionante do mundo. Ele parecia que queria entrar dentro de mim novamente. Isso deu um fôlego para ele (e para nós) enfrentar a cirurgia.”

“Eu e Darcy não podíamos pegá-lo no colo, mas, conversávamos direto com Heitor. Ele sabia que estávamos ali ao lado dele. Fiz um diário sobre sua vida.”

“A minha ficha demorou a cair. Eu não tinha a dimensão da gravidade do problema. Ficamos quatro meses na UTIN, mas, nunca fiquei sozinha. Os amigos e familiares caminharam de mãos dadas com a gente. Recebíamos visitas diárias.”

“O resultado do cariótipo confirmou que Heitor tinha Síndrome de Edwards. A geneticista foi muito seca ao dar a notícia. Perguntei se poderia estimular o meu filho, ela disse que não adiantaria estimulá-lo, pois, os poucos que nascem, morrem em 24 horas. Quando vivem mais, vivem em oxigênio. Eu retruquei afirmando que meu filho já tinha 28 dias e que estava vencendo. A médica respondeu: ‘Não se apegue a esse ser porque você vai perdê-lo em breve’. Saí dali chorando e cheguei a UTIN arrasada. A equipe (de médicos, enfermeiras e psicólogos) foi fantástica. Disseram: ‘Agora já sabemos o que o Heitor tem. Vamos adotar as melhoras estratégias para ele ter uma qualidade de vida.’ Sou eternamente grata por tudo que fizeram. A sorte é que desejei muito meu filho, pois pela geneticista eu teria desistido dele.”

“Heitor fez ao longo de sua vida 15 cirurgias, entre elas: gastrostomia (não sugava), hérnia inguinal (virilha), estrabismo, no pé, nas pernas, adenoide (dificuldade em respirar). Cada vez que ficava em estado grave eu achava que iria perdê-lo. Fomos aprendendo a lidar com a síndrome e serenar. Fomos acreditando, esperançando e comemorando cada conquista.”

Eu tive a honra de participar desse processo durante um longo período. Cresci ao observar Jeane e Darcy. Aprendi muito sobre nossa impotência e pequenez, sobre a humildade, a não lamentação. Eles não desanimaram. Foram à luta, buscaram ajuda de profissionais amorosos e competentes que ampliaram as possibilidades para o desenvolvimento de Heitor.

“Ele não anda e não fala. É o nosso anjo. Está sempre sorrindo e interagindo. É feliz. Lê a nossa alma. É um grande guerreiro, veio nos ensinar o amor, a simplicidade e o desprendimento. Ensinar que não temos o controle das coisas. Quando estávamos ainda no hospital e percebemos a fragilidade da vida de Heitor, passamos a comemorar o dom da sua existência a cada 30 dias. Os amigos e a equipe do hospital participavam desse momento de renovação da energia.”

A dor de Jeane passou a ser nossa. Éramos contagiados por sua fibra, determinação e esperança. Ela não se isolou na tristeza. Quanto tempo Heitor viveria? Como seria sua vida? Isso não era o mais importante.

Não perdi uma comemoração, todo mês ia ao hospital para o aniversário de mês de Heitor. Tudo enfeitado com bolas, bolo, docinhos e salgadinhos. O mais importante era a quantidade de amigos e familiares presentes. Criamos um grupo coeso, amoroso, que respirava vida, esperança, fé, certeza de que Heitor seria um vencedor.
Com quase cinco meses Heitor foi para casa, mas, até completar três anos sua imunidade era baixa, por isso evitavam aglomerações.

Jeane e a fonoaudióloga Karini Gomes Pirajá decidiram criar um site para partilhar as conquistas diárias de Heitor. A importância da fisioterapia respiratória, da terapia ocupacional e do acompanhamento com a fonoaudióloga. O site visava também partilhar dados sobre a Síndrome de Edwards, trocar experiências entre as pessoas e os profissionais. Até então, as informações sobre a síndrome eram precárias, assustadoras e desanimadoras.

Participei do lançamento do site na Ufes. O auditório estava lotado. Depoimentos emocionantes. Jeane afirma que após o lançamento do site concepções mais positivas começaram a circular na internet. Seis de maio é o dia da conscientização da Síndrome de Edwards.

“Através do site consegui ajudar outras pessoas, conheci uma organização não governamental denominada Síndrome do Amor, situada em Ribeirão Preto, SP. Essa associação possui 2000 famílias cadastradas com crianças com doenças raras. Os pais são acolhidos e sentem-se mais seguros.”

Com quatro anos Heitor foi para a escola Criarte (Ufes). A equipe de educadores não sabia nada sobre a Síndrome de Edwards, mas, todos se envolveram para oferecer o melhor.

“A fisioterapeuta indicou um parapodium para ajudar na estabilidade de Heitor, no fortalecimento da musculatura e permitir que ele ficasse em pé.”

Quando o parapodium ficou pronto, Heitor reagiu negativamente, não gostou porque era grande e tinha um extensor para a perna ficar esticada, além de um órtese para posicionar melhor os pés.

“Decidimos então fazer uma oficina na escola com a presença de Jocleiton Oliveira (Ortesista e protesista) que construiu o parapodium. Jocleiton levou pacotinhos de gesso e fez molduras das mãos e dos pés das crianças. Explicou para elas o que era o parapodium e que poderiam brincar com Heitor. Após a dinâmica, Heitor ficou muito feliz quando foi colocado no parapodium e as crianças também. Todos se envolveram para brincar e ele passou a interagir com as crianças numa postura vertical, o que fez toda diferença.”

“Heitor cursou o ensino fundamental (sete aos 15 anos) numa escola pública. Meu coração gelava cada vez que o deixava na escola. Imaginava que os adolescentes iriam despreza-lo ou agredi-lo. Pelo contrário, Heitor foi muito respeitado e amado. Aonde ele chega as pessoas se aproximam, querem sentir sua energia de amor. Ele ama a escola. Não sabe ler, escrever, mas, aprendeu a interagir.”

Sou testemunha da alegria e pureza que Heitor transmite. Ele sempre nos acolhe e envolve com um largo sorriso.

Quando Heitor completou sete anos nasceu seu irmão Arthur. Os dois criaram um forte vínculo, brincam muito. Arthur é alegre, carinhoso e atencioso. Atualmente Arthur quer empurrar sua cadeira de rodas, leva-lo para passear.

Nesse mesmo período, Darcy morreu em um acidente. Heitor sofreu muito com a morte do pai. Jeane relata que com a perda de Darcy tornou-se pai e mãe. “Não é fácil, pois tenho que me dedicar também ao trabalho na Ufes. Mas, não me abato. Recomeço cada dia com gratidão. Hoje eu cuido de Heitor com a ajuda do meu irmão.”

De acordo com dados do IBGE (2018), existem no Brasil cerca de 13 milhões de pessoas com deficiência. Por isso, esse tema é imprescindível para que nosso compromisso e sensibilidade se expandam. Para que políticas públicas e ações garantam os direitos e a inclusão social de todos.

Solicitei que Jeane fechasse essa crônica com algumas palavras. Ela começou cantarolando “Cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é” (Caetano Veloso).

“Não podemos romantizar a relação. Tem dor sim, mas, tem muita delícia, muito aprendizado, evolução, crescimento, reconhecimento e respeito. Não sou mais especial do que qualquer mãe por ter tido um filho como Heitor. Sou simplesmente uma mãe que tenho que observar outras formas de cuidado. Minha situação é mais favorável do que de outras mães, pois temos mães pobres que não têm condições de dar o mínimo para seus filhos. Além de ter conhecimento, tenho condições de buscar os melhores profissionais.”

“Nossos filhos precisam desse cuidado especial. O amor é fundamental, mas, só o amor não basta. É preciso ter uma rede de apoio, rede de amigos e de familiares. Políticas públicas eficazes e eficientes. Precisamos de alguém para cuidar das mães. Mães que ficam doentes e estão cuidando de pessoas doentes.”

Quem cuida das mães? Como podemos nos envolver numa rede de apoio?

*Beatriz Herkenhoff é assistente social. Professora aposentada do Departamento de Serviço Social da UFES. Com doutorado pela PUC-SP. Autora do livro: “Por um triz: Crônicas sobre a vida em tempos de pandemia” (2021).

*Jeane Ferraz é mãe de Heitor e Arthur. Assistente Social. Professora doutora do Departamento de Serviço Social e do Programa de Pós Graduação em Política Social da Ufes.

12 respostas para “O amor não é suficiente: é preciso uma rede de apoio”

  1. Muito emocionante a experiência de Jeane e Heitor. Inspiradora

    1. É verdade. Obrigada pela visita

  2. Avatar de Maria Anita Falcão de Oliveira
    Maria Anita Falcão de Oliveira

    Estou muito impactada com essa crônica e com a história de vida de Jeane que eu já conhecia. Mas você Bia, tem o dom de nos afetar com seus escritos marcados por seu envolvimento com as pessoas. Parabéns sempre por partilhar afetos e um grande abraço a querida colega Jeane.

    1. Obrigada, Maria!

  3. Avatar de Alcir Santos de Oliveira
    Alcir Santos de Oliveira

    Emocionante é a primeira palavra que vem a mente. Na verdade, é muito mais, uma incrível aula de superação e, sobretudo de solidariedade, este produto cada dia mais escasso na sociedade atual. Para as autoras o meu abraço de solidariedade, carinho, respeito e reverência que tanto fazem por merecer.

    1. Obrigada pela visita!

  4. Avatar de Teresinha Moreira Barros
    Teresinha Moreira Barros

    Parabéns Beatriz pela dedicação ao seu trabalho. Como sempre uma escrita emocionante. Minha admiração sempre.
    Forte abraço!

  5. Avatar de MARIA BEATRIZ LIMA HERKENHOFF
    MARIA BEATRIZ LIMA HERKENHOFF

    Desirêe, Maria Anita e Alcir senti-me feliz e grata com suas palavras. Fiquei muito emocionada ao escrever esta crônica com Jeane. Uma linda amiga que nos tira do lugar da vítima, da autopiedade e da desistência. Linda mulher que nos convida a arregaçar a manga e ir à luta e envolve uma rede de apoio e de solidariedade. Você é luz Jeane.

    1. Querida Beatriz, gratidão pelo convite de escrever com você. Foi emocionante rever a nossa história e comemorarmos os avanços e desafios enfrentados. A vida continua e somos eternos aprendizes. Um dia de cada vez sempre. E obrigada a Desiree, Anita, Alcir e Teresinha pelas palavras e a redelume pela oportunidade de compartilhar a minha experiência. Sigamos na nossa caminhada. Abraços

  6. Avatar de MARIA BEATRIZ LIMA HERKENHOFF
    MARIA BEATRIZ LIMA HERKENHOFF

    Gratidão Teresinha por cada feedback e partilha da sua própria experiência que me estimula a seguir em frente

  7. Uma lição de vida, muito impactante de força e determinação e esperança.

  8. Avatar de Maria José Herkenhoff Carvalho
    Maria José Herkenhoff Carvalho

    Que crônica inspiradora, Beatriz! Que lindo olhar de amor sobre a pessoa com deficiência.
    Você, com o seu olhar atento e amoroso, nos leva a refletir sobre assuntos tão importantes como a deficiência física de tantos que nos rodeiam e, como o amor é gratificante na vida dos que se dedicam a praticá-lo

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