Candidato a deputado estadual, o vereador cassado em um processo permeado pelo racismo, em Curitiba, esteve em Londrina e conversou com a Lume sobre preconceito, bandeiras e eleições nacionais
Cecília França
Fotos: Filipe Barbosa
Renato Freitas, 38, está em campanha. Em Londrina, na última quinta-feira (01), reuniu apoiadores, visitou o bairro Nossa Senhora da Paz, conhecido como favela da Bratac, panfletou na Universidade Estadual de Londrina (UEL) e exibiu o documentário “Renato, um de nós” no Nosso Sebo. A candidatura a deputado estadual pelo PT, no entanto, ainda não está oficializada, já que, com a cassação de seu mandato como vereador em Curitiba, no dia 5 de agosto, Renato teve também os direitos políticos suspensos por oito anos.
A cassação está sendo contestada e os advogados de Renato apontam várias inconsistências no processo que levou à perda de seu mandato pela participação em um ato antirracista dentro de uma igreja. O processo evidenciou o racismo institucional da Casa, que nunca antes havia cassado um parlamentar, mesmo os envolvidos em crimes como peculato e assédio.
“Eu não sou o primeiro homem negro naquela Câmara dos Vereadores, nem sou a primeira pessoa de periferia, mas sou o primeiro que honra suas raízes, que tenho negritude e tenho consciência de classe, e, portanto, eu me oponho aos interesses deles (vereadores) nas falcatruas, no nepotismo cruzado, no tráfico de influência, na venda que os vereadores fazem de suas próprias autonomias em troca de reeleição, para que se perpetuem no poder”, aponta Renato.
Nascido em São Paulo, Renato veio ainda bebê com sua mãe para a região metropolitana de Curitiba, acompanhando o pai, que havia sido preso no Paraná. Viveu na rua a infância e a adolescência, cometeu atos infracionais, perdeu o irmão, o pai e muitos amigos. Viu o lado autodestrutivo da “liberdade explosiva” na rua e buscou outro caminho por meio dos estudos.
Formou-se em direito e é mestre na área pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Atua como advogado criminalista popular e busca, na política partidária, ser uma representação das reais necessidades da população das periferias.
“Eu não nasci vereador, eu não vou morrer vereador. Ser vereador foi um acidente, ou um incidente, não sei. Também não me considerava um empacotador, nem um balconista, nem um repositor”, diz ele à Lume.
Quem é, então, Renato Freitas?
“Eu sou alguém nascido para incomodar aqueles que há muito tempo estão acomodados no poder sobre as nossas costas, que a gente tem que carregar há tanto tempo, mesmo que isso custe a nossa própria vida. Eles tiveram a oportunidade – muitas – de me eliminar até meus 20 anos, estava tudo propício. Eu tive minha primeira arma com 15, 16 anos de idade, antes de ter lido meu primeiro livro. A gente foi programado para morrer por esse país e por esse sistema e agora somos efeito colateral”, resume.
No dia da votação que terminou com a cassação de seu mandato, o padre da igreja Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos de São Benedito, onde ocorreu a manifestação considerada “quebra de decoro” pela Casa, esteve na Câmara e advogou a favor do vereador. Dias antes o arcebispo metropolitano de Curitiba, José Antônio Peruzzo, também havia defendido a manutenção do cargo de Renato.
“Eu vou até para o Vaticano, vou ser recebido pelo Papa no dia 25 ou 26 de setembro. Até agora não caiu minha ficha. O Dom Peruzzo fez uma nota para a Câmara de Vereadores para que não me cassarem, o padre da igreja do evento esteve na primeira fila no dia da votação. Então não é disso que se trata, mas de uma perseguição de cunho político, em primeiro lugar, porque se eu coadunasse, se eu fosse um associado do sistema, isso não aconteceria.”
Confira abaixo os principais trechos da entrevista concedida por Renato Freitas à Lume onde ele fala de sua história de vida, trajetória, política paranaense e eleições presidenciais.

Formação política por meio do RAP
“A política, de modo geral, esteve na minha vida junto com o RAP nacional, a música de uma forma geral. Sou muito guiado pela música, mas o RAP me deu um senso de pertencimento, de valorização, e também me deu uma explicação inicial sobre os principais problemas que eu vivia naquele tempo. Eu sou de 1983, então ali em 1992, eu com 8, 9 anos, estava me vendo como uma criança negra, pobre, moradora de ocupação, com o pai presidiário, a mãe empregada doméstica, criado na rua e, de algum modo, desamparado, pelo Estado e até pela minha família. Minha mãe é da Paraíba, então não tinha família extensa aqui, só tinha uma família nuclear, e mesmo essa família nuclear era fraturada.
E o RAP foi me explicando a rua e foi me dando condições de sobrevivência, mas também de proeminência, porque os rappers são intelectuais orgânicos da quebrada, da periferia e a gente sendo discípulo do RAP, de algum modo, a gente trazia isso também, essa questão de pensar, de refletir sobre os problemas, de liderar e de estar junto a processos de mudança nos bairros e etc.
Num segundo momento, fui empacotador de mercado, fui balconista de sorveteria, fui repositor, mas também fui um menor infrator. Desde criança a rua me ofereceu isso também como estratégia de sobrevivência. Muitos amigos mortos, muitos amigos presos e muitas histórias trágicas e eu fui perdendo essas pessoas, assim como perdi familiares. Meu irmão foi morto com 24 anos, assassinado, meu pai morreu com 30 e tantos anos, não sei direito, porque não tinha muito contato.
Fui percebendo que é preciso alguma estratégia de sobrevivência que não fosse a da subserviência dos trabalhos que eu tinha, mas que também não fosse dessa liberdade explosiva da rua – e por explosiva, também, um pouco autodestrutiva. Essa revolta que eu tinha o RAP também me deu.
A revolta é uma dádiva porque, para você se libertar das correntes que o prendem, você precisa se movimentar para perceber que elas existem. E o RAP fez eu me movimentar desde sempre.”
Mudança de vida pelos estudos
“Voltei a estudar, fiz vestibular, entrei na universidade, no curso de Ciências Sociais, em 2004, daí sim foi uma virada de página na minha vida. Não sem provação, porque em 2002 eu trabalhei o ano todo de repositor, peguei meu seguro-desemprego e paguei um cursinho popular que tem lá em Curitiba. Na metade do curso eu fui alvo de um ato de preconceito muito grande. Ficou uma coisa muito ruim. Eu era um dos poucos negros. Então foi um ato de uma violência muito grande. Eu saí do curso, parei de estudar. Na verdade, eles me roubaram, porque eu já tinha pago tudo. E foi difícil, eu estudei sozinho, mesmo assim eu passei.
Depois que passei em Sociais eu me filiei ao PT, comecei a compreender o que era o comunismo, o socialismo, ideologias. As teorias da universidade cada vez mais confirmavam as teorias de um sistema de explicação que a gente tinha elaborado na periferia, com os nossos intelectuais orgânicos, cada vez mais esses entendimentos se confirmavam e se complementavam. Não demorou muito para eu estar envolvido no movimento estudantil.
Infelizmente tive que sair do curso em 2005, porque era só diurno e eu tinha que trabalhar, não tinha o que fazer. Mas eu senti o gosto da política, o gosto da universidade, e sabia que ali era o meu lugar; me fascinei pela universidade.
Em 2007 eu voltei para fazer Direito, já no regime de cotas raciais. Daí minha vida mudou completamente, porque eu voltei para o movimento estudantil e me dediquei de corpo e alma à universidade. No direito fui pesquisador, fui bolsista, publiquei alguns artigos, fui em congressos internacionais, estudei criminologia, a realidade do cárcere, as condições que fazem com que a gente tenha a terceira maior população carcerária do mundo, então essa política toda foi alvo da minha pesquisa.

Logo depois entrei no Mestrado também, sem regime de cotas, consegui me equivaler aos outros estudantes. Passei no concurso da Defensoria Pública, fui assessor jurídico lá, fui advogado popular, presidente da associação dos servidores da Defensoria.
Eu não sou de Curitiba. Nasci em São Paulo, mas meu pai foi preso aqui e eu vim ainda bebê. Fui registrado ao lado do presidio do Ahú. Morei em Almirante Tamandaré e depois 15 anos em Piraquara, ao lado do maior complexo penitencio do Paraná.
A bola do mundo girou de uma forma comigo que hoje eu posso fazer justiça com quem eu fui quando criança.”
Passagem pelo Psol e volta ao PT
“Eu era do PT. Quando eu entrei no Direito eu fui para o Psol. Fui candidato a vereador em 2016, o partido estimava que eu poderia fazer até 300 votos. Eu panfletava de graça para o partido, porque eu sempre estive na causa, que é a minha causa. Eu estive lá na periferia, do lado de um córrego, numa meia água de madeira, sem banheiro, com uma patente que era um buraco, numa situação insalubre, indigna para um ser humano estar. Eu estive lá com a minha mãezinha. Como eu tinha muitos conhecidos, eu tive 3,5 mil votos. Fui o mais votado do Psol naquela ocasião e na história do Psol até hoje, quase fui eleito. Só que percebi que o partido não me considerava, me respeitava, mas não achava que eu poderia representar eles.
Aí voltei para o PT, fui candidato a deputado estadual em 2018, tive mais de 15,6 mil votos, foi uma votação muito boa, sem nenhum recurso do partido. Em 2020 fui candidato, tive mais de 5 mil votos, fui eleito vereador e comprei várias batalhas. Tive o primeiro processo de cassação numa batalha minha contra a bancada evangélica, porque aqueles hipócritas estavam trazendo médicos sem caráter algum até a Câmara de Vereadores para, na tribuna, falar para toda a população curitibana que tomando ivermectina elas poderiam se submeter aos ônibus lotados, a condições insalubres no trabalho, porque a ivermectina era medicação suficiente para o coronavírus.
Eu chamei esses vereadores de mentirosos, picaretas e charlatões, e isso me gerou um processo de cassação. Mas essa cassação foi falha, eles não tiveram sucesso, porque a própria empresa que fabrica a ivermectina disse que não tem nada a ver com o coronavírus, e eu fui absolvido na Comissão de Ética.”
Construção de um estereótipo
“É a segunda vez que estou sendo criminalizado por uma manifestação. Dentro desse primeiro processo eles colocaram também uma manifestação no Carrefour, antes de eu tomar posse, no dia 20 de novembro de 2019, Dia da Consciência Negra. Nós nos manifestamos por conta da morte do Beto Freitas, que foi espancado brutalmente até a morte num Carrefour do Rio Grande do Sul. Eu particularmente fui um dos organizadores, fizemos uma manifestação no Carrefour do Parolin. Na parede, na mureta do estacionamento, eu escrevi ‘A injustiça praticada em qualquer lugar do mundo é uma ameaça à justiça em todos os lugares do mundo‘, Martin Luther King.
A mídia no outro dia colocou ‘vereador pichador, vereador vândalo, vereador bandido’, “mal tomou posse e já está cometendo crime pela cidade’. Várias reportagens com esse intuito de difamação, e não teve uma mídia alternativa ali que pudesse se contrapor a essa narrativa, e ela colou. Então quando eu tomei posse, os vereadores já começavam a chamar de maconheiro, de vagabundo, tudo por conta dessa manifestação, por eu ter escrito essa frase. E, claro, pelo racismo. Eu negro, de periferia, tendo escrito uma mensagem de protesto com uma lata de spray era tudo que eles queriam para me enfiar dentro de um estereótipo.”
Bolsonarismo e eleições presidenciais
“Na verdade essa é uma eleição histórica. Eu acredito que é a eleição mais importante que nós já tivemos, até porque a história da democracia no Brasil é muito curta, recente. Por isso também a democracia é tão frágil. E justamente por ela ser frágil ela agora está sob ataque. O Bolsonarismo é o fascismo, a gente não pode naturalizar o fascismo como se fosse apenas mais uma viabilidade, uma opção política, uma opção de voto qualquer, como as outras. Não.
O Bolsonarismo já veio numa política se desvalorização da vida, de culto à morte. A frase ‘bandido bom é bandido morto’, que impulsionou popularmente o Bolsonaro no país, já chega com uma mensagem de reivindicação da morte, chega desejando literalmente a morte de alguém.
Agora a gente tem que perguntar quem é esse alguém, quem é visto tradicionalmente, historicamente, como bandido nosso país? Os jovens negros, sem camisa, aqui na Bratac, com três buchas na boca pra fumar uma, porque é dependente químico e não tem um tratamento de saúde no nosso país, não é levado a sério, não tem oportunidade, com ensino fundamental incompleto, ou seja, foi desassistido já durante a sua primeira infância. Teve uma parte de seu destino determinado, que é a ausência da alfabetização inicial. O Brasil – o Estado e a segurança pública – enxerga ele como inimigo. Não enxerga as pessoas que compram imóveis com 51 milhões de reais em dinheiro, lavando dinheiro, fazendo formação de quadrilha, milícia.
A polícia, a justiça e as pessoas não vêem como inimigo da nação os empresários como ‘Véio da Havan’, que financia um laboratório de mentiras e, com isso, ataca a democracia; porque um dos elementos para que haja democracia é a possibilidade de informação de qualidade. Se a tua informação está sendo deturpada deliberadamente por um grupo poderoso que está no poder político e econômico, então eles estão fragilizando a democracia. Eles são inimigos do Estado de fato, mas não é isso que sai nos jornais.
Por isso o mote da nossa campanha é: ‘O dia Caça, a revolta dos humildes’. O caçador jogou a gente numa mata fechada para correr e eles se divertirem. Acontece que eles desperdiçaram toda a munição, a noite caiu, a mata é nossa amiga e a gente criou habilidade de enxergar de noite e se comunicar em silêncio. Então agora parece que eles é que estão perdidos e acuados.”
Deixe uma resposta