Minha crítica nesse texto é para além da sociedade e Estado, é sobre os partidos que compõem a esquerda, a esfera partidária que não abre mão do seu privilégio e não permite que a juventude adentre com novos ares, novos caminhos, novas possibilidades

Por Oliver Letícia Fernandes, secretário da Frente Trans Londrina

A treta é sobre território e sempre será, e não só o território físico, mas o social e político também e, infelizmente, existem corpas que são invisíveis perante essa luta e pouca coisa é feita sobre, praticamente nada é feito. Minha crítica nesse texto é para além da sociedade e Estado, é sobre os partidos que compõem a esquerda, a esfera partidária que não abre mão do seu privilégio e não permite que a juventude adentre com novos ares, novos caminhos, novas possibilidades.

Segundo dados da ANTRA, no ano de 2022 foram 151 mortes de pessoas trans sendo 131 casos de assassinato e 20 pessoas trans suicidadas. O número diminuiu mas o Brasil ainda segue sendo o país que mais mata pessoas trans no mundo, alcançando o 14º ano consecutivo, lembrando que esses são os casos notificados, então não temos ideia sobre o número exato dado a transfobia sistêmica como, por exemplo, pessoas trans que são enterradas com seu nome morto ou corpas trans que não são identificadas como tal dado ao estado que o corpo pode ser encontrado, entre outras inúmeras violências que nossas corpas passam mesmo depois de mortas.

A Frente Trans Londrina nasceu de um episódio de extrema violência, a morte de uma criança de 13 anos, Keron Ravach, no ano de 2021, viveu e ainda vivemos sendo violentades nesse sistema, fisicamente e psicologicamente. Ainda mais revoltante é não haver interesse de grande parte da esquerda de reverter este quadro.

Por decisão do coletivo escolhemos não nos pronunciar esse mês e analisar quais as esferas políticas e sociais iriam recordar tamanha importância, foram poucas, das poucas que vieram até nós em nenhum momento houve o questionamento sobre a saúde do coletivo ou uma real preocupação sobre a continuidade dele, pelo contrário, fomos cobrades que não se organizamos o suficiente, chamades de travades, fechades, de difícil acesso, fomos convidades para palestras, mesas de debates, reportagens porém, em nenhum momento, nos perguntaram se teríamos condições de se locomover até o local.

Usam nossas vivências para pesquisa, nossas corpas para trabalho como ratos de laboratórios mas diferente desses não nos dão casa nem comida e ainda nos acusam de sermos agressivos se cobramos tal. Me chamo Oliver Leticia, tenho 29 anos e desse tempo tenho cerca de 10 anos de militância, militância essa que passou pelos estados de Santa Catarina, São Paulo e Paraná.

Nesses 10 anos nunca me senti realmente confortável em estar dentro de locais partidários, juventude, classista, trabalhadora, e sempre segui de forma autônoma, independente, algumas vezes tive ajuda de partidos e sindicatos mas infelizmente não é a realidade de Londrina.

Nesses 2 anos de Frente Trans Londrina passamos por momentos bons e difíceis, ganhamos visibilidade porque não só decidimos colocar nossas corpas a combate, situação essa que infelizmente é cotidiana para nossa realidade, mas também para ressignificar a rua, lugar onde muitas de nós vive ainda ou viveu em algum momento.

O Ato Keron Ravach de janeiro de 2021 foi o marco não só inicial para o coletivo mas de demonstrar a força que nossas corpas têm, força essa que persiste até hoje mesmo sem ajuda nenhuma. Para além dos marcos que fizemos na cidade como a Mostra Trava em janeiro de 2022, com a mostra de curtas na Concha, a vigília pela criação do Conselho LGBTQIA+, o projeto de podcast que foi patrocinado pelo PROMIC que junto teve uma ação de lambes pela cidade, também participamos ativamente da criação do Ambulatório Trans, nossa maior vitória até aqui por puro mérito próprio, sempre tendo a rua como veiculo de luta e resistência.

Nesses 2 anos de vida de lutas não houve nenhuma tentativa de inserção por parte da esquerda partidária para nos ajudar na continuidade do coletivo, não houve interesse em saber sobre a saúde mental, física, econômica das pessoas do coletivo, tivemos pouca ajuda de pessoas da sociedade civil e minimamente ajuda de outros coletivos autônomos assim como nós tentando de alguma maneira sobreviver.

Agora vou trazer a seguinte reflexão sobre a militância: historicamente são corpas travestis, pretes, mulheres cis que estão a frente da linha de enfrentamento. Lembro aqui, por exemplo, da Brenda Lee que fundou a primeira casa de acolhimento para pessoas com HIV na década de 70/80/90 pontuando que ela salvou inúmeras travestis na época da Ditadura Militar da operação Tarântula, essas são as corpas que se arriscam para salvar pessoas e são essas mesma corpas que são menosprezadas por partidos e sociedade geral sempre colocades em lugar nenhum, como se não tivéssemos poder para conseguir e aqui trago essa perspectiva: dentro do seu partido ou coletivo, o lugar onde você se organiza politicamente, se você tirar as mulheres, pessoas pretas, pessoas trans quantas pessoas sobram? E dessas que sobram o quanto elas são capazes de se organizar sozinhas?

Infelizmente é desse mal patriarcal, branco e cis que a Frente Trans Londrina vem sofrendo, sofremos a segregação por sermos corpas dissidentes e essa segregação nos leva a passar situações de violência e risco para nossas vidas. Enquanto coletivo, ainda buscamos o acesso da nossa população a serviços básicos como saúde e educação, a empregabilidade para mulheres trans e travestis e muitas vezes, infelizmente isso é o mais comum que acontece, o acesso a moradia e comida. Sim, pessoas vem até nós porque estão passando fome, em situação de rua, sem uma cama para dormir, por isso repito que não há um real interesse da esquerda partidária em acabar como nosso sofrimento, não há um interesse real em fazer um trabalho de base, que é o que mais nossa população precisa.

Mesmo muitos desses partidos tendo 20, 30, 40 ou + anos de criação e dinheiro o suficiente para ajudar há um discurso onde somos colocades abaixo do que é viável para a militância partidária, um discurso onde é necessário acessar a academia para ter credibilidade, ter representações dentro do congresso para ter credibilidade, então nos olham do alto e nos menosprezam, nos ignoram por estarmos lutando na rua e mesmo com esse empecilho nós estamos aqui lutando e fazendo barulho, recebendo ajuda da sociedade civil, trabalhadores, professores, estudantes, pessoas comuns do dia a dia que acreditam no nosso trabalho porque é só o povo que salva o povo.

Um texto longo de desabafo e crítica, mas de força e vigor porque estamos aqui, vives, apesar das tentativas de nos silenciar, de nos apagar. Um alerta a vocês pessoas trans: não façam nada de graça, não respondam questionários sobre TCC, sobre pesquisas de graça, esses trabalhos nunca chegam até nós, esse conhecimento permanece na academia e premia a quem fez não a quem respondeu, quem viveu, e a você pessoas cis que leu até aqui se questione onde estão as pessoas trans no seu trabalho, faculdade, círculo de amizade e pergunte a ela o que ela precisa, seja dinheiro ou seja carinho.

Se esforce ao máximo para ajudar uma pessoa trans. Passamos por gerações de representatividade e esta que cresce agora está sendo educada para atacar e não para ser passiva, para cobrar e não esperar, para calar a boca e não ficar quieta. Não fomos agressives até aqui mas passaremos a ser para garantir o mínimo para os nossos, não iremos descansar até que todes tenham acesso ao mínimo que é necessário para um ser humano viver. Eles combinaram de nos matar mas nós combinamos de não morrer!!

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