Dos 513 eleitos, 94 são mulheres. Um feito histórico no Brasil, afinal a ocupação de um espaço tão predominantemente masculino é algo a ser enaltecido, mas cadê as mulheres pretas nesta foto?

Por Ana Maria Alcantara*

A pedido da Rede Lume fiz a análise de uma das fotos da posse dos deputados eleitos para a legislatura de 2023 a 2027 no Congresso Nacional. Na imagem, um momento de celebração em que as Deputadas comemoram o empossamento. Dos 513 eleitos, 94 são mulheres. Um feito histórico no Brasil, afinal a ocupação de um espaço tão predominantemente masculino é algo a ser enaltecido, mas o que me chama a atenção na imagem não é a presença, mas sim a ausência. Cadê as mulheres pretas nesta foto? Onde estão as negras retintas?

Pablo Valadares/Agência Câmara

Enquanto jornalista e mulher preta, me ocupo aqui de provocar reflexões que promovam um entendimento mais profundo sobre a condição da mulher negra e as violências e apagamentos aos quais estamos expostas.

Embora em 2023 tenha havido um aumento no número de mulheres na Câmara, é preciso ter um olhar crítico e analisar: De quais mulheres estamos falando? Quem são essas mulheres eleitas? Quem essas mulheres representam?

Ter uma mulher à frente de um cargo político não é garantia de representatividade. A ex-ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, por exemplo, ocupava o cargo para supostamente defender pautas relacionadas às mulheres, mas veja quanto retrocesso promoveu e quanto desserviço prestou às mulheres desse país? Damares é o perfeito exemplo de que não basta ser mulher para lutar por uma causa que atenda mulheres.

Assim também como não basta ser negra se não houver o letramento racial e número suficiente de cadeiras na Câmara para se articular em torno de pautas que atendam às mulheres negras.

E por que falar de mulheres negras e não mulheres no geral? Ora, porque os dados da violência contra as mulheres negras estão aí, escancarados. Somos as que menos têm acesso às condições de habitação, transporte, renda, trabalho. Somos o grupo com menor acesso à saúde, à educação, ao lazer.

Dados do SUS comprovam que no sistema de saúde se aplica doses menores de analgésicos nas mulheres negras em relação às mulheres brancas. O pré-natal das mulheres negras tem menor número de consultas e exames. Estamos mais expostas à violência obstétrica e também à violência doméstica.

A disparidade salarial entre brancos e negros mostra que mulheres negras recebem 46% dos rendimentos de um homem branco. (Dieese – 2º trimestre de 2022). E eu poderia seguir elencando várias outras injustiças sociais às quais nós, mulheres negras, estamos gritantemente mais vulneráveis.

A garantia mais básica de todas, a vida, que numa sociedade democrática liberal seria universalmente protegida, para as mulheres negras é negada pelo processo de desumanização. A mulher negra vive num constante estado de não pertencimento, de não adequação e não aceitação, porque todas as esferas da nossa vida são cerceadas por violências que aviltam a nossa humanidade e podam a nossa existência.

Nossa estética é rechaçada, nossas religiões demonizadas, nossas ideias diminuídas e nossas necessidades ignoradas. Não há grupo social que se solidarize com a situação da mulher negra, nem mesmo o homem negro.

Até aqui nenhum outro grupo social se dispôs a compreender a complexidade das violências que moldam as experiências de vida de nós, mulheres negras. Nenhum grupo consegue alcançar como essas violências nos colocam num lugar social de extrema vulnerabilidade. Por isso, se nós não ocuparmos espaços de poder para nós mesmas propormos e criarmos políticas públicas que nos atendam, isso nunca será feito.

É preciso validar as experiências das mulheres negras, precisamos de mecanismos que meçam o nível de opressão e violências às quais estamos expostas e precisamos de possibilidades de existência que nos possibilitem viver e não apenas sobreviver.

Como uma mulher preta, me preocupa muito não ver outras iguais a mim nesta foto. Ocupar espaços é importante e necessário. Não tem como falar em equidade sem representatividade. E não estar representada nessa foto entrega a mensagem que, de novo, por mais 4 anos, nossas pautas não serão de fato analisadas em profundidade e muito provavelmente não serão inseridas numa agenda de políticas públicas.

E por que falo da mulher preta e não de negras em geral? De novo, porque há de se entender que mulheres são diversas e que as experiências de vida da mulher negra de pele escura são diferentes das experiências das mulheres negras de pele clara. A negra parda ainda desfruta de certa passabilidade, ela ainda acessa certos privilégios, mas a negra retinta, não desfruta nem de privilégios e muito menos acessa, de fato, todas as dimensões das instâncias de poder.

Por isso as únicas 3 ou 4 negras retintas que foram eleitas para a Câmara de Deputados, por mais que estejam genuinamente comprometidas com nossa causa, não conseguirão grandes avanços em nossas questões. Não porque não estejam empenhadas, mas porque elas não estão ocupando esses espaços com reais possibilidades de exercício de poder frente aos outros mais de 500 deputados aos quais em sua maioria pouco interessa a situação da mulher preta.

Uma última olhada na foto e a cena toda se delineia com uma crueza estarrecedora. Enquanto elas celebram, o público, a maioria formada por homens, vira as costas, vai cuidar de seus assuntos. E às negras retintas não coube sequer um espaço na foto.

* Ana Maria Alcantara é mulher preta, mãe, jornalista e feminista negra. Ligada no rolê de skincare nas horas vagas.

**Uma das mulheres pretas eleitas é a paranaense Carol Dartora (PT). Leia entrevista dela à Rede Lume publicada em outubro de 2022.

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