No meu primeiro livro “Por um triz: Crônicas sobre a vida em tempos de pandemia” (2021) escrevi uma crônica sobre a loucura que habita em nós.

Sempre fui atraída e envolvida pela temática da loucura.

Cresci brincando nas ruas de Cachoeiro de Itapemirim (ES) e, nesse contexto, convivia com aqueles que eram considerados “os loucos” da minha cidade. 

Como assistente social, meu primeiro emprego foi no Hospital Psiquiátrico Adauto Botelho (ES) e desde então compreendi que que a loucura não era individual, mas familiar, coletiva e institucional. 

A internação hospitalar agravava a loucura de muitos que por ali passavam.

E, muitas vezes, a família escolhia um membro para depositar a sua loucura.

Aprendi que ao invés de apontar o dedo para a loucura do outro, eu poderia assumir a parte que é minha nesse universo. 

Posteriormente, como assistente social da Vale do Rio Doce (CVRD), trabalhei dez anos com dependência química.

Com essas experiências, fui desafiada a buscar terapia e encontrar a loucura que existe em mim. 

Eu só encontrarei a minha cura se dialogar permanentemente com minha loucura. E o equilíbrio entre esses dois polos sempre será tênue.

Ontem meu amigo Ricardo Galeta enviou-me um convite para participar do desfile de carnaval no Sambão do Povo. O nome do Bloco? Que loucura. O objetivo? Defender a saúde mental.

Meu coração ficou saltitante, pois antes da pandemia desfilei inúmeras vezes na Escola de Samba Unidos Piedade. E fiquei super motivada para participar do Bloco Que Loucura.

Quando soube que Fabiola Leal, minha amiga e colega do Curso de Serviço Social da Ufes, era a principal organizadora do Bloco Que Loucura, liguei imediatamente para saber sobre a origem do Bloco e sua história.

Os relatos a seguir são de Fabiola. Ela irá nos contar uma linda história de amor e compromisso com a saúde mental.

“O bloco existe desde 2014 e é formado por usuários, familiares e trabalhadores da saúde mental do SUS. Envolve pessoas com transtornos ou em situação de uso de drogas que estão em cuidado nos CAPS (Centro de Atendimento Psicossocial do Espírito Santo).”

“Os CAPS (Ministério da Saúde) são serviços de saúde de caráter aberto e comunitário que atendem pessoas com sofrimento psíquico ou transtorno mental, incluindo aquelas com uso de álcool, crack e outras substâncias.” 

“O Bloco Que Loucura foi criado com o objetivo de defender o SUS. Está vinculado ao projeto de Extensão Fenix do Departamento de Serviço Social da Ufes, em parceria com a professora Adriana Leão, do Departamento de Terapia Ocupacional da Ufes.” 

Fabiola conta que “ficou desativado no período da pandemia e ao reativá-lo, eu entrei em contato com a Liga das Escolas de Samba e falei que queríamos colocar a loucura na avenida. Literalmente a loucura”.

“Para nossa surpresa, a Liga topou e nos deu a abertura do desfile das Escolas de Samba de Vitória, na sexta, dia 10 de fevereiro de 2023.”

“Estamos ensaiando desde dezembro e toda sexta eu choro no ensaio ao ver os usuários com o suor escorrendo e com as camisas encharcadas de tanto sambar. Eles fazem questão de carregar a bandeira da loucura e o estandarte que defende o SUS.”

“Os ensaios do bloco foram um caos, mas um caos organizado. A loucura é um pouco isso, se apresenta em suas múltiplas manifestações.”

“Foi impactante sentir a energia e a alegria de 400 pessoas desfilando no Bloco Que Loucura. Trinta ritmistas dos blocos Afro Kizomba, Maluco Beleza e Esquerda Festiva entraram na avenida com o Bloco Que Loucura.” 

“Levamos para a avenida o som da liberdade, o som do cuidado no território, o som da atenção psicossocial.” 

“Levamos para a avenida a loucura nossa de cada dia. Aquela que já foi diagnosticada, mas também aquela que nos faz ousar viver nessa sociedade tão complexa e cheia de desafios.” 

“O Bloco Que Loucura faz parte de uma luta muito linda, cheia de vida e esperança.”

“Usuários, familiares, profissionais e apoiadores entraram na avenida para defender o fim do manicômio e da estigmatização. Afirmando que o cuidado deve ser realizado em liberdade.”

“Foi uma grande conquista observar uma galera que vive em residência terapêutica oriunda da Clínica Psiquiátrica Santa Isabel e do Hospital Psiquiátrico Adauto Botelho entrar na avenida e desfilar num espaço democrático como é o carnaval.” 

“Tenho certeza que a cultura salva essas vidas. E é pela via da cultura e da arte em suas múltiplas manifestações que vamos avançar na luta antimanicomial e antiproibicionista.” 

“Ontem ecoamos o som da liberdade. A loucura não se compra, não se vende, saúde não é mercadoria.”

“Três refrões foram cantados na avenida com muita força, garra, potência e alegria: 

1. Que bloco é esse? Que bloco é esse? Cê não sabe não? É o Que Loucura! Pela saúde da população (sai do chão).

2. Liberdade para cima, manicômio pro chão combatendo combatendo todo tipo de opressão. 

3. Maluca e Maluco. Eu sou maluca, eu sou doidona. E tô na luta por um SUS que funciona. Eu sou maluco, eu sou doidão, e tô na luta contra toda opressão.

“A multidão vibrou. Cantou junto. Com muita purpurina, fizemos brilhar essas vidas tão violentadas em sua trajetória.”

“Não estamos romantizando a loucura, nem o sofrimento. Mas estamos dizendo que é possível conviver e sublimar a loucura através da cultura, da arte e da dança.” 

“As letras são todas autorais. A logomarca foi feita pela psicóloga. As camisas e abadares foram confeccionados pelos usuários da saúde mental.”

“Ao desfilar vestimos um abadá feito por mãos que não são valorizadas pelo capitalismo. Mãos consideradas improdutivas, mas que confeccionaram faixas. fantasias e abadares lindos e maravilhosos.”

“Valorizamos mãos, mentes e corações criativos e amorosos. Resgatamos sua autoestima e autoimagem positiva.”  

Após ouvir esses belíssimos relatos de Fabiola, eu entrei no perfil do blocoqueloucuraes no Instagram. Fiquei muito emocionada ao ver os ensaios realizados no CAPS São Pedro. 

Sem palavras! Fui tocada por inteiro, corpo, mente e alma. Estou muito emocionada.

Que possamos assumir a loucura coletiva que determina o nosso jeito de ser e estar no mundo.

Que a arte e a cultura continuem resgatando vidas. 

Pelo fim da estigmatização! 

Meu respeito e admiração pelos profissionais da saúde mental! Viva o SUS!


*Beatriz Herkenhoff é assistente social. Professora aposentada do Departamento de Serviço Social da UFES. Com doutorado pela PUC-SP. Autora do livro: “Por um triz: Crônicas sobre a vida em tempos de pandemia” (2021).

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16 respostas para “Que Loucura!”

  1. Por que só li hoje
    Meu Deus.
    Estaria lá no bloco
    Graça Andreatta

    1. Avatar de MARIA BEATRIZ LIMA HERKENHOFF
      MARIA BEATRIZ LIMA HERKENHOFF

      Graça, em 2024 iremos desfilar com o bloco que loucura! Beijos

  2. Que amor de loucura! Viva a arte!

  3. Avatar de MARIA BEATRIZ LIMA HERKENHOFF
    MARIA BEATRIZ LIMA HERKENHOFF

    Muito emocionante essa experiência, não é marjolima?

  4. Avatar de Fabiola Xavier Leal
    Fabiola Xavier Leal

    Agradecemos a Beatriz pela delicadeza dessa Crônica e do afeto com o Bloco Que Loucura!

    1. Avatar de MARIA BEATRIZ LIMA HERKENHOFF
      MARIA BEATRIZ LIMA HERKENHOFF

      Gratidão Fabíola por sua garra, compromisso, energia de amor, transformando vidas e levando alegria e saúde para todos que participaram do bloco Que Loucura. Cresci e aprendi muito com seus depoimentos

  5. Avatar de Scheila Silva Rasch
    Scheila Silva Rasch

    Que texto belo pra falar do Que loucura. Parabéns, Beatriz pelos escritos.
    Eu estava lá. Foi lindo, vibrante e emocionante.

    1. Avatar de Valter Molulo Moisés
      Valter Molulo Moisés

      Lendo o texto revivi aqueles momentos, agora com narração qualificada ao fundo…

      1. Avatar de MARIA BEATRIZ LIMA HERKENHOFF
        MARIA BEATRIZ LIMA HERKENHOFF

        Fico feliz Valter por ter reproduzido em letras aquilo que vocês viveram de corpo e alma. Que essa linda experiência do bloco Que Loucura faça a diferença em muitas vidas

    2. Avatar de MARIA BEATRIZ LIMA HERKENHOFF
      MARIA BEATRIZ LIMA HERKENHOFF

      Scheila quero desfilar com vocês no próximo ano. Fiquei muito emocionada com o bloco que loucura. Vocês espalharam amor, alegria e esperança na avenida. Gratidão

  6. Avatar de Daildo Magalhães
    Daildo Magalhães

    Eu posso falar com propriedade trato uma esquizofrenia a quase 20 anos, e através de uma luta que sempre foi e será incansável hoje posso relatar em um dos meus livros que tem por nome (F20.9) venho dizer que venci, quando digo que venceu é porque sou bem mais forte que uma letra e três números, fui diagnosticado com esse Cid , mas venho lutando e posso dizer que “tenho esquizofrenia, posso morrer com esquizofrenia, mas não de esquizofrenia”
    Sou Daildo Magalhães
    Vila Velha ES.

    1. Avatar de MARIA BEATRIZ LIMA HERKENHOFF
      MARIA BEATRIZ LIMA HERKENHOFF

      Que depoimento forte Daildo. Muito importantes suas lutas e conquistas. Um convite para que outros encontrem também caminhos de superação e ressignificação da saúde mental. Gratidão

  7. Louco, me ensinaram, já faz muito tempo, *é todo aquele que é diferente*. Portanto. Como vivemos na sociedade dos rótulos, o caminho mais cômodo é mais fácil é o de pés pegar um rótulo no “diferente” e afastá-lo, jogar pro lado. Procurar entender, dar a mão, poucos fazem. A coisa é tão cruel que até portadores de transtornos mais comuns, como ansiedade, depressão e transtorno pós traumático, são discriminados e optam por esconder das outras pessoas como forma de evitar a discriminação. É muito cruel! Dói de verdade, o mínimo que dizem é “frescura”. Assim gente cono Santos Dumont, que sustentava a possibilidade de algo mais pesado que o ar voar, foi tido como louco. O grande Vincent Van Gogh do fenomenal “Girassóis”, internado várias vezes. E que dizer do nosso Arthur Bispo do Rosário que morreu, como tantos outros, no Juliano Moreira. Importa lembrar o quanto sofreu Nise da Silveira para impor uma forma de acolhimento com um mínimo de bom senso.
    Portanto, só aplausos para a autora do artigo e, especialmente, aos criadores desse bloco maravilhoso.
    Vida longa a todos vocês, gente que faz a gente ter um pouquinho de fé no bicho homem!

  8. Avatar de MARIA BEATRIZ LIMA HERKENHOFF
    MARIA BEATRIZ LIMA HERKENHOFF

    Que Belo e profunda reflexão Alcir. Gratidão. Você nos leva a refletir sobre as contradições da nossa sociedade que nega a própria loucura e deposita no outro aquilo que não quer enxergar em si. A indiferença que segrega ao invés de incluir e acolher. Concordo com você, o bloco Que Loucura faz toda diferença na vida das pessoas. Diz não ao estigma, ao preconceito e ao aprisionamento. Que possamos caminhar de mãos dadas no processo de humanização dos seres humanos

  9. Kid Abelha gravou uma canção no final dos anos 70 muito interessante,na primeira estrofe ele diz.
    “DIZEM QUE SOU LOUCO,POR EU TER UM GOSTO ASSIM.
    GOSTAR DE QUEM NÃO GOSTA DE MIM ”
    Interessante que basta alguém fazer algo diferente que o rotulamos de louco.
    Antes de me envolver com o alcoolismo (estou a 33 anos sem fazer o uso de bebidas alcoólicas) eu rotulava os dependentes do álcool de: sem vergonha, sem caráter e outros rótulos, foi necessário eu mergulhar no fundo do poço e alguém estender a mão para mim e com muito amor e sabedoria divina me dizer que eu não era um mal caráter ou sem vergonha eu era um doente e precisa de tratamento
    Hoje eu abordo pessoas que estão passando pelo que eu passei, antes de dizer qualquer coisa eu me coloco no lugar dele.
    Por isso Beatriz que eu sou sempre grato a Deus por ter estendido a mão para mim.
    Obrigado BEATRIZ. el

  10. Avatar de MARIA BEATRIZ LIMA HERKENHOFF
    MARIA BEATRIZ LIMA HERKENHOFF

    Fiquei emocionada com seu depoimento Elias
    Sou grata por eu ter sido a mão que acolheu e resgatou no momento em que você estava no fundo do poço. O que mais me toca no seu depoimento é como você colocou a sua vida a serviço de outras pessoas. Mais importante do que aprendermos a lidar com a nossa “diferença” (tão julgada e estigmatizada pela sociedade) é compartilhar nossas experiências para que outras pessoas possam lidar com a dependência química e superar a dor que afeta toda família. Por tudo isso fiquei tão identificada com trabalho realizado por Fabiola (e demais profissionais) por meio da bloco Que Loucura. Temos muito a realizar

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