Após o carnaval, iniciamos o tempo da quaresma. Período em que a Igreja nos convida para uma revisão de vida.

Tempo de jejum e abstinência, de busca por mudanças efetivas em nossas vidas, fortalecendo nossa capacidade de amar e servir.

A partir de 1962, a Campanha da Fraternidade (CF) foi incorporada à quaresma. E a proposta de mudança pessoal incluiu a solidariedade em relação àqueles que sofrem.

Por isso, todo ano a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) escolhe como tema central um problema concreto vivido pela sociedade brasileira.

Em 2000, a Campanha da Fraternidade passou a reunir de forma ecumênica igrejas cristãs, como: Católica, Presbiteriana Unida, Anglicana e Luterana. Enriquecendo mais ainda esse momento tão importante de revisão de vida.

A Campanha da Fraternidade em 2023 tem como tema Fraternidade e Fome e como lema “Dai-lhes vós mesmos de comer” (Mateus 14,16).

Pela terceira vez a temática da fome é abordada pela Campanha da Fraternidade com o tema “Fome e Pão” (1975, 1985 e 2023).

A fome mexe com nossas entranhas, com nossa estrutura espiritual, psíquica e emocional.

Enquanto jogamos fora alimentos que sobram em nossa mesa, 33,1 milhões de brasileiros não têm o que comer (IBGE, 2022). Comparando com pesquisa anterior, em pouco mais de um ano são 14 milhões de novos brasileiros em situação de fome.

Segundo o relatório da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede PENSSAN), considerando todas as regiões do país, em média 3 em cada 10 famílias vivem a incerteza do acesso a alimentos em um futuro próximo.

Os povos Yanomami vivem situação catastrófica com casos de desnutrição extrema em famílias inteiras. Desnutrição grave, infecções respiratórias, muitos casos de malária e doenças diarreicas.

Contraditoriamente, o Brasil é um dos principais produtores e exportadores de alimentos. Temos 43 milhões de hectares destinados para a agricultura. Exportamos carne bovina, suína e de aves. Produzimos soja, feijão, arroz, milho, trigo, cacau, frutas, entre outros. Produtos saudáveis que fornecem vitaminas e proteínas para o nosso corpo.

Mas, infelizmente, o aumento do consumo de alimentos ricos em carboidratos, gorduras e ultraprocessados tem como consequência maior número de pessoas obesas e simultaneamente desnutridas.

Meu coração dói quando leio que a insegurança alimentar afeta a perspectiva de futuro das crianças, compromete o seu desenvolvimento físico e cognitivo, sua memória e atenção.

Foto: Carlos Monteiro

A fome afeta o desenvolvimento da nossa Nação em suas bases.

É a negação da própria existência. Uma ameaça à vida e à dignidade do ser humano.

Nesse sentido, o compromisso no combate à fome é de todos os brasileiros e brasileiras.

Gostaria de sensibilizar cada um para essa causa que gera tanto sofrimento. E pergunto:

O que sentimos quando vemos imagens de famílias inteiras passando fome? E quando observamos que aumentou o número de pessoas em situação de rua?

E quando pensamos em pais e mães que sofrem ao dormir por não terem como colocar um pão à mesa de seus filhos no dia seguinte?

A realidade da fome nos mobiliza ou ficamos indiferentes a seus apelos?

Que condicionamentos nos levam a uma blindagem em que a fome não nos afeta?

Que acontecimentos nos distanciam da realidade dos mais pobres?

Que concepções nos protegem da dor do outro?

Como a desigualdade foi incorporada ao nosso cotidiano como algo natural?

A semente do amor e da compaixão em relação aos que menos têm é plantada na mais tenra idade.

Criamos essa raiz no coração de nossos filhos ou priorizamos em sua formação o narcisismo e o egocentrismo?

Onde foi parar nossa capacidade de amar, ser sensível, solidário e acolhedor?

Como podemos romper com essa lógica perversa?

Como contribuir com a humanização da vida? Como resgatar a nossa generosidade, compaixão, empatia, desprendimento e humanidade?

Como amar verdadeiramente os mais pobres? Como contribuir para a construção de um mundo onde todos tenham o necessário à sua sobrevivência?

Como caminhar com o pobre e repartir o pão? Como ser instrumento para redução da desigualdade social? Como acolher os imigrantes e abandonados desse mundo? Como cuidar do nosso planeta terra e de suas riquezas naturais?

Como aumentar a partilha em um mundo de fartura?

Como fazer uma revisão de vida que nos liberte da indiferença coletiva?

No enfrentamento da fome torna-se necessária a construção de uma sociedade em que todos tenham o direito ao trabalho, à saúde, à educação, à segurança alimentar e à moradia digna.

Os Evangelhos narram que Jesus tem “compaixão do povo”. Quando viu uma multidão, abatida e desorientada, como “ovelhas sem pastor ficou comovido porque o povo não tinha o que comer” (Mateus 15,32). Sua ação imediata foi providenciar comida.

Ter compaixão significa identificar-se com o sofrimento do outro. Despertar o desejo de minorá-lo e desenvolver um impulso altruísta e fraterno.

Os apóstolos sugeriram que despedisse a multidão “para que fossem ao povoado onde poderiam comprar pão”. Jesus, porém, os compromete, dizendo: “Dai-lhes vós mesmo de comer” (Mateus 14,16).

Meu amigo Elias Rocha comenta sobre a profundidade desse chamado de Jesus: “Dá-lhes vós mesmos de comer”. Ele pertence à denominação Batista e relata que enviaram missionários para a África para levar o pão espiritual, mas, ao chegar lá, viram que faltava o alimento físico. “Por isso fizemos uma campanha de mobilização para suprir a necessidade daqueles que viviam em regiões pobres da África, pois a fé sem obras é morta.”

A campanha Fraternidade e fome incentiva as comunidades e a sociedade a assumir suas responsabilidades.

Experiências riquíssimas de solidariedade estão sendo gestadas no Brasil e no Espírito Santo.

A sociedade civil organizada está fazendo pequenos e grandes gestos de solidariedade. Movimentos estão se unindo: igrejas, sindicatos de trabalhadores, patronais, ONGs, associações profissionais, de moradores, de agricultores familiares, movimentos pela reforma agrária, pela moradia urbana, movimentos sociais de direitos humanos, grupos de jovens, entre outros.

O Papa Francisco tem afirmado permanentemente que um dos maiores desafios da humanidade é vencer a fome, a insegurança alimentar e a desnutrição.

Em sua mensagem para a Pré-Cúpula sobre Sistemas Alimentares da ONU (26 de julho 2021), o Papa afirma:

“Produzimos comida suficiente para todas as pessoas, mas muitas ficam sem o pão de cada dia. Isso ‘constitui um verdadeiro escândalo’, um crime que viola direitos humanos básicos. Portanto, é um dever de todos extirpar esta injustiça através de ações concretas e boas práticas, e através de políticas locais e internacionais ousadas.”

Nessa perspectiva, continua o Papa, a “correta transformação dos sistemas alimentares desempenha um papel importante” para fortalecer economias locais e reduzir o desperdício alimentar. Para garantir “o direito fundamental a um padrão de vida adequado.”

Para alcançar a Fome Zero até 2030, “não basta produzir alimentos”, comenta Francisco, mas é preciso “uma nova mentalidade e uma nova abordagem integral. Projetar sistemas alimentares que protejam a Terra e mantenham a dignidade da pessoa humana no centro; que garantam alimentos suficientes em nível global e promovam o trabalho digno em nível local.”

O Papa indica que precisamos corrigir a raiz do nosso sistema alimentar injusto. Para tanto, somos desafiados a: recuperar o setor rural; valorizar os “conhecimentos tradicionais” dos agricultores; implementar políticas e iniciativas que atendam plenamente as necessidades das mulheres rurais, promover o emprego de jovens e melhorar o trabalho dos agricultores nas áreas mais pobres e mais remotas.

Vamos cobrar dos órgãos públicos municipais, estaduais e federais sua responsabilidade na erradicação da fome.

Vamos dar visibilidade a ações coletivas que despertam a esperança e a certeza de que é possível reduzir a fome.

Que ações solidárias e engajamentos concretos podemos desenvolver nesse período da quaresma e ao longo dos próximos anos para erradicar a fome em nosso país e no mundo?

Vou indicar duas possibilidades concretas de solidariedade: a Campanha Paz e Pão da Arquidiocese de Vitória que tem feito a diferença na vida de milhares de pessoas e também uma instituição que trabalha no território Yanomami: Hutukara Associação Yanomami. 

Para uma contribuição para a Campanha Paz e Pão acesse o site: https://www.aves.org.br/doacao/.

Para o povo Yanomami, o depósito pode ser feito na conta bancária:

Hutukara Associação Yanomami 

Banco do Brasil

Agência: 2617-4

Conta corrente: 58.918-7

CNPJ: 07.615.695/0001-65

Chave aleatória PIX: 8b323044-0123-49e5-8938-03bdc8491277

Quero finalizar com as palavras do Papa Francisco: “Temos a responsabilidade de realizar o sonho de um mundo onde o pão, a água, os remédios e o trabalho fluam em abundância e cheguem primeiro aos mais necessitados”.

*Beatriz Herkenhoff é assistente social. Professora aposentada do Departamento de Serviço Social da UFES. Com doutorado pela PUC-SP. Autora do livro: “Por um triz: Crônicas sobre a vida em tempos de pandemia” (2021).

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5 respostas para “Fraternidade e Fome”

  1. Fome de comida, de justiça, de educação, de beleza e afeto…

  2. “Dai-lhes vós mesmos de comer”
    Essas palavras de Jesus são muito fortes, porque se Ele dá ordem aos apóstolos para alimentar a multidão é porque ele sabia que eles tinham algo para repartir, compartilhar com o próximo. Isso nos leva a refletir: o que eu tenho para compartilhar com o meu próximo?
    Parabéns Beatriz.

  3. *Fraternidade e Fome* , sem dúvida um tema forte que permitiu a essa incansável Beatriz produzir um texto consistente, instando as pessoas a olhar para o lado certo, ver o outro carente, famélico mas não menos humano que cada um dos que têm como se alimentar.
    A fome é uma dura realidade que cresce na razão direta da concentração de renda.

  4. Avatar de MARIA BEATRIZ LIMA HERKENHOFF
    MARIA BEATRIZ LIMA HERKENHOFF

    Gratidão Alcir por sua reflexão, não podemos nos acomodar e ficar indiferentes à realidade da fome

  5. Avatar de Maria Anita Falcão de Oliveira
    Maria Anita Falcão de Oliveira

    Obrigada por compartilhar informações tão importantes sobre insegurança alimentar

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