Ação mundial traz na programação local uma homenagem a personagens importantes na luta contra o preconceito religioso e de raça em Londrina

Mariana Guerin

Foto em destaque: Filipe Barbosa

Se pudesse definir Candomblé em uma palavra, a Iyalòrişá Claudia Ikandayò diria: amor. Mas também resistência. Uma resistência milenar, de união, inclusão, resiliência e, acima de tudo, paz. “Nós vestimos o branco da paz, mas nós também não fugimos de uma guerra, se for preciso.”

Para celebrar o Dia do Candomblé, 21 de março, o Àṣẹ Ọdẹ Aiyó – Centro de Umbanda Cachoeirinha de Xangô do qual a Iyalòrişá Claudia Ikandayò é dirigente, em parceria com a Mãe Bete ObáLobí -, aderiu ao movimento internacional dos 21 Dias de Ativismo.

“Pensando nesses 21 dias de ativismo negro, o dia 21 será voltado totalmente para difundir e enaltecer o Dia Nacional do Candomblé, que foi agora outorgado pelo presidente Lula. Será o primeiro ano, de muitos outros que virão, do Dia do Candomblé”, diz a Iyalòrişá Claudia.

Segundo ela, a programação no Àṣẹ Ọdẹ Aiyó, conhecido como Quintal do Acarajé, vai contar com oficina de atabaques, toques de tambores, contação de histórias da cultura africana, roda de samba, capoeira e uma mesa extensa com babalorixás, ialorixás e cargos pertinentes à umbanda e ao candomblé, para trazer, de dentro para fora, o conhecimento da religião de matriz africana.

“Nós estamos. Somos porque existimos. E nós não precisamos ser tolerados, como nada na vida e no mundo precisa ser tolerado. A partir do momento que você tolera, você não respeita. E nós viemos, ao longo das décadas, brigando por esse respeito. Nós somos seres denominados e de pertença ao lugar, ao espaço, à terra, ao fogo”, ensina a Iyalòrişá.

“Então, esse dia 21 vai ser voltado para a contação de história para desmistificar o que a sociedade insiste em demonizar porque não conhece. Hoje em dia não existe mais tabu, nem mesmo religioso. Não temos uma compra de fé, de tabu, de ocultismo. Nós não temos rituais.”

“Quando fala ritual, a pessoa já denomina a algo satânico. Mas a nossa liturgia é muito transparente: somos pessoas que respeitam hierarquias. Respeitamos os nossos mais velhos e vamos passando isso de geração a geração. Esse dia 21 vai ser aberto para todo o povo de Londrina, para que venham comungar desse Dia Nacional do Candomblé, com palestras, com músicas, para entrar na dança, para sentir o ritmo dos atabaques, para sentir essa história contada e fazer um trabalho de multiplicador dessa história”, convida a Iyalòrişá Claudia.

“Nós estamos. Somos porque existimos. E nós não precisamos ser tolerados”,
diz a Iyalòrişá Claudia/ Foto: Cecília França

Frente Antirracista coordena os ’21 Dias de Ativismo’ em Londrina

A Frente Antirracista de Londrina também participa da programação dos 21 Dias de Ativismo, movimento mundial que acontece há sete anos e sempre termina em 21 de março, para marcar o Dia Internacional contra a Discriminação Racial.

“Como a frente antirracista não estava constituída e nós militávamos independente de outros movimentos, Londrina ainda não tinha tido os 21 Dias de Ativismo. Mas este ano teremos 21 dias de combate ao racismo e à intolerância religiosa, com uma programação intensa”, diz Natália Lisboa, coordenadora da Frente Antirracista de Londrina.

Para ela, é essencial tratar do racismo o ano todo, não só em novembro, mês marcado pelo Dia da Consciência Negra. “No Brasil, esses 21 dias trazem mais uma especificidade, que é o dia do assassinato da Marielle Franco, 14 de março. Também temos o dia 25 de julho, que é o Dia da Mulher Negra Latino-americana e Caribenha. Então é sempre importante conseguirmos mais espaços dentro dos calendários dos movimentos sociais”, avalia Natália.

Ela recorda que a Frente Antirracista de Londrina iniciou suas atividades em setembro de 2022. “Já militávamos em movimentos negros e muitas pessoas brancas eram parceiras na luta, mas como o movimento negro é um lugar de espaço auto-organizado, a gente sentiu essa necessidade de ter pessoas brancas conosco, porque quando nós, pessoas pretas, falamos de racismo, dificilmente o branco nos ouve.”

“Na luta auto-organizada continua o protagonismo negro dentro da Frente. É primordial. A Frente veio também dessa necessidade de unificar o movimento negro da cidade. Para nós, ainda é muito difícil nos articularmos. Somos pessoas que trabalham, as mulheres pretas têm filhos, os homens negros, às vezes, morrem no meio do caminho e trabalham também, enfim, para nós é muito mais difícil estar articulado”, assinala Natália.

Para ela, “apesar de Londrina ser uma cidade branca, elitista, que tende mais para o lado da direita”, é uma cidade em que o movimento negro obteve vários avanços, como o regime de cotas na Universidade Estadual de Londrina, que foi pioneiro no Brasil.

“Já conseguimos trazer pessoas indígenas, então eu acho que é mais uma questão de, cada vez mais, nos articularmos, nos organizarmos, para conseguir mais lutas.”

Para 2024, a meta da Frente Antirracista é alcançar uma cadeira na Câmara de Vereadores de Londrina. “Acho que o Paraná já tem mostrado esse novo movimento dentro da política, com a Carol Dartora, como deputada federal, e o Renato Freitas, como deputado estadual e presidente da Comissão de Igualdade Racial”, destaca Natália.

’21 Dias de Ativismo’ tem programação intensa

A programação de eventos dentro dos 21 Dias de Ativismo envolve algumas pautas nacionais que serão replicadas em Londrina: abertura no dia 1 de março, homenagem à Marielle Franco, Carolina de Jesus e Abdias do Nascimento, no dia 14, e encerramento no dia 21.

A organização local decidiu homenagear também personagens que fizeram a diferença para a população negra em Londrina, como a designer Wanda Maria Lisboa e o advogado Oscar do Nascimento, defensor de causas sociais, em especial, a igualdade racial.

Natália conta que Wanda era sua tia e existe um projeto para dar o nome dela a uma rua de um bairro em construção na Zona Norte de Londrina. “Ela trabalhou 35 anos na Cohab. Morreu em 2020 de um câncer no peritônio.”

“Era desenhista na Cohab, então todas essas casas da Cohab construídas nos últimos 35 anos foi ela quem desenhou. Ela era uma mulher forte, que fez um curso majoritariamente masculino, o curso de design. Depois ela fez desenho industrial, se especializou em identificações, fez pós-graduação, fez mestrado, deu aula na graduação.”

“E ela sempre sofreu muito racismo institucional dentro da Cohab. Ela relatava para mim e meus amigos coisas que ela sofria dentro da Cohab, então eu fiz essa proposta de resgate de pessoas daqui que foram importantes, mas não são conhecidas. Quem sabe alguém se interessa pela história dela e ela não vira uma pesquisa acadêmica, um livro?”, sugere Natália.

A Iyalòrişá Claudia Ikandayò conviveu com Oscar do Nascimento e conheceu seu ativismo de perto: “Ele foi presidente da federação local da religião de matriz africana e começou a validar e dar alvará para as casas de Umbanda de Londrina e região. Durante muito tempo ele correu todas as casas de Umbanda e Candomblé dando alvarás, protegendo.”

“Ele não só viabilizou o alvará, como prestava assistência jurídica ao povo de matriz africana. Ele fez toda essa militância. Ele militava junto à falecida Ya Mukumbi pelo povo preto, pela minoria.”

“Porque no sul do país a intolerância é muito grande, o apagamento histórico das tradições e religiões matriz africana é muito grande, então ele se propôs, junto com o povo de matriz africana e o povo de periferia, as minorias, a fazer um trabalho voluntário pelo menos três vezes por mês. Esse era o doutor Oscar do Nascimento e eu tive o prazer de conhecer esse homem maravilhoso”, recorda Iyalòrişá Claudia.

A programação segue nos dias 11 e 12 de março com café da manhã junto aos familiares no complexo de cadeias de Londrina e, em parceria com a Marcha Mundial das Mulheres e a Frente Desencarcera Londrina, será servido um café da manhã em homenagem às mulheres e distribuição de panfletos com informações sobre direitos dos visitantes e violência doméstica.

No dia 11, serão distribuídos materiais da Frente Antirracista no Feirão da Resistência no Canto do MARL e no dia 16, haverá uma homenagem às mães que perderam filhos para a polícia.

Por que é tão difícil ser antirracista?

“Desde que nos tiraram da África e colocaram a gente nos navios negreiros, já colocaram quem não falava a mesma língua junto para que não tivesse esse tipo de organização. Sempre foi um projeto branco para a gente não conseguir se organizar. De fato, o racismo não é uma invenção nossa, não é um problema nosso. É uma invenção branca, e um problema do branco. Só que para o branco saber que ele é racista, ele precisa aprender”, opina Natália Lisboa.

Para ela, o momento ainda é didático. “Nós só conseguimos adentrar na universidade agora, porque isso foi negado para nós. A gente não tinha acesso à escola, a gente não tinha acesso à saúde, a gente não tinha acesso a nada.”

“E agora a gente está começando, minimamente, a entrar na universidade. Se formar ainda é muito difícil para nós. Já começa a ter pesquisa, já tem livros publicados por escritoras pretas e escritores pretos. Livros acadêmicos.”

“Mas se a gente quiser avançar, infelizmente, e eu falo com muita dor no coração, porque não é problema nosso, a gente vai ter que começar a fazer um trabalho didático como os brancos, de falar: você está sendo racista. Isso é racismo. Se o branco falar ‘eu quero continuar sendo racista’, o problema é dele”, reflete Natália.

“Falamos muito em aquilombamento. Nós precisamos, não só nos aquilombar, mas nos fortalecer, nos unir, colocarmos nossas pautas com seriedade, sabermos cumprir horários, para que nós estejamos, de fato, com pautas efetivas, concretas e unidos”, alerta a Iyalòrişá Claudia Ikandayò.

Ela ressalta que outros movimentos são muito estruturados por terem condições financeiras, meios políticos acessíveis e por sempre estarem articulados. “Por que é tão difícil ser antirracista? É porque a sociedade ainda não está ou nunca esteve preparada para se colocar no lugar do outro.”

“É muito fácil dizer ‘estou na luta antirracista’, mas o que que você faz no seu dia a dia? Qual é a articulação que você faz no seu dia a dia para que você se denomine antirracista? Qual é a briga racial em que você se envolve? São atitudes. Tem que sair da falácia. No Brasil, para você ser privilegiado, você não pode ser preto. Nós não somos empoderados porque ninguém deu o poder ao negro. Nós tivemos que pegar na raça, na luta.”

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