Quando escolhi fazer o curso de Serviço Social já tinha cravado em meu ser a sensibilidade e o compromisso com aqueles que são desprovidos de recursos e possiblidades de sobrevivência em sua existência.

Ao trabalhar como assistente social na luta por um mundo mais justo, humano e igualitário, encontrei pessoas que colocam suas vidas a serviço. Largam tudo para morar em rincões da pobreza, em regiões distantes e isoladas espalhadas pelo Brasil e pelo mundo.

Em minha cidade, muitos realizam trabalhos voluntários belíssimos em bairros da periferia, hospitais, presídios, abrigos de crianças e adolescentes, casas de repouso, entre outros.

Dói a alma quando penso que 33,1 milhões de brasileiros vivem a dor da fome e que nos diversos continentes do mundo são 19 milhões que convivem com a fome severa.

E eu pergunto: a realidade da fome nos mobiliza ou ficamos indiferentes a seus apelos?

Muitas vezes buscamos um sentido para nossa existência, mas não nos deixamos envolver em projetos sociais que fazem a diferença na vida de centenas de pessoas.

Há 33 anos participo de uma Comunidade de Oração e Vida. Sempre buscamos ter um compromisso de solidariedade com instituições que trabalham com projetos sociais no município da grande Vitória (ES).

Desde 2016 ficamos próximos da irmã Aurora, que pertence à Congregação de Jesus na Eucaristia. Ela realiza (com mais quatro irmãs) uma linda e desafiante missão em Angola, no continente africano.

Vou partilhar essa história com vocês, pois além de trazer esperança, desperta em nós o desejo de nos colocarmos a serviço.

Foi muito emocionante quando a irmã Aurora veio ao Brasil e participou de uma celebração com nossa comunidade de oração. Ela relatou experiências fortes vividas em Angola.

Elas residem no município de Kambambe/Dondo, na província de Kuanza Norte, Aldeia Cassoalala, com 10 mil habitantes.

Choramos com suas histórias, vimos fotos que nos aproximaram da realidade da Aldeia Cassoalala. Vibramos com as conquistas e fomos profundamente tocados pelo relato da fome e dos graves problemas de saúde e educação.

Abraçamos irmã Aurora como se estivéssemos acolhendo as irmãs que estão em missão com ela e todos que sofrem naquela região.

Irmã Aurora plantou em nosso coração a semente da compaixão, da sensibilidade e do amor em relação aos mais pobres.

Fotos: Arquivo Pessoal/Irmã Aurora

Com a palavra, a irmã Aurora:

“Nossa primeira missão, em Angola, é de sermos uma comunidade formadora, despertando o amor pelo Reino de Deus e o desejo de assumir o nosso projeto de vida.”

“Vivemos numa região com clima muito quente e com pouca chuva. O que gera fome e doenças, como: tosse seca, tuberculose, hepatite, infecção urinária, gripe, epilepsia (em grande parte da população), anemia, desnutrição, desidratação, alcoolismo acentuado, vários tipos de doença mental, tumores, paludismo (em toda a população), febre tifoide, HIV (SIDA), diarreia, verminose, cólicas menstruais intensas, fortes dores de: cabeça, pernas, dentes, vista, ouvido, coluna, peito (crescimento dos ossos do peito para frente, que chamam de giba).”

Realidade muito triste! Ao ouvi-la eu me pergunto: até quando construiremos uma bolha de proteção para que a dor do outro não nos sensibilize?

“A mortalidade infantil é assustadora, bem como as mortes de adolescentes, jovens e idosos (totalmente desamparados pelo Estado).”

“Existem dois postos de saúde para consulta e teste de paludismo, mas médico, dentista e técnicos em enfermagem são inexistentes. Há apenas “enfermeiros” (homens treinados para tal trabalho durante a guerra) que atendem no posto de saúde, onde a higiene é precária, devido à falta de verba.”

Que contribuições podemos dar para amenizar essa realidade? Como nos sensibilizar e sair do comodismo?

“Falta dinheiro para tudo, dificuldade de água para consumo, gerando doenças e desconforto. Em época de grandes chuvas, acontecem tempestades estarrecedoras. Não há inverno, mas um tempo de orvalho à imitação de garoa com o nome de cacimbo.”  

“O solo é arenoso e pouco produtivo, salvando as margens do rio Lukala, a 5 km da aldeia. Produzem bananas, batata doce, mandioca, amendoim (ginguba), cebola, milho, feijão, pimentão (pimento), pimenta malagueta (gindungo), abóbora, berinjela, quiabo, tomate, coco, dendê, cana, mamão, graviola (sap-sap), pinha, goiaba, araçá (salsa), manga, laranja, limão, cajazinho (gajajá), tamarindo, múcua (baobá= embondeiro) e maracujá.”

Irmã Aurora continua: “O ano de 2016 foi uma prova de fogo, marcado pela fome que atingiu a população por causa do alagamento das roças e da alta abusiva do custo de vida. Sobrevivemos graças às ajudas financeiras que nos são generosamente enviadas”.

Muitos cristãos e não cristãos colocam-se em movimento e se envolvem em ações concretas de solidariedade.

“Na aldeia de Cassoalala o analfabetismo é de 90% da população. Em toda ação pastoral ou educativa é preciso considerar essa triste realidade, mesmo entre os que frequentam as escolas.” 

“Em relação à educação, existem duas escolas, uma pública e outra particular (aquela em que as irmãs atuam), conveniada com o governo, que remunera professores das disciplinas básicas e a direção. As demais funções são custeadas pelos Salesianos de Dom Bosco, responsáveis por este conjunto, chamado “Missão”, que abriga até 800 alunos.”

“As irmãs da Congregação de Jesus na Eucaristia realizam um trabalho de evangelização com crianças, jovens e adultos; visitam as famílias da comunidade e acompanham nove aldeias; ministram aulas na escola e cuidam da saúde do povo com medicina alternativa.”

O critério de felicidade não está no acumulo e na riqueza. Mas no amor que partilho. Somos chamados a dividir nossos bens com alegria e desprendimento. O exercício do desapego não é fácil, mas é libertador.

Os órgãos públicos são responsáveis por políticas públicas na área de saúde, educação, segurança alimentar, direitos humanos, entre outros. Mas é preciso anunciar, denunciar e cobrar. Qual a parte que me cabe?

Que possamos ser tocados por esse amor. Contribuir com um mundo onde todos tenham o necessário à sua mesa. Contribuir com a redução da desigualdade social.

Irmã Aurora continua: “Vivemos como o povo vive: plantamos, carregamos água, cozinhamos no carvão, sofremos com a falta de muitas coisas, rezamos etc. É Deus quem nos envia e sentimo-nos felizes em estar nessa terra linda de missão”.

Que sementes de amor e solidariedade esse testemunho planta em nosso coração?

Que possamos viver esse tempo de quaresma movidos pela compaixão. Mergulhar no nosso eu e na realidade do nosso país e do mundo.

Que gestos, ações solidárias e engajamentos concretos podemos desenvolver para o resto de nossa existência? Que legados de amor, justiça, igualdade e esperança deixamos para as futuras gerações?

*Beatriz Herkenhoff é assistente social. Professora aposentada do Departamento de Serviço Social da UFES. Com doutorado pela PUC-SP. Autora do livro: “Por um triz: Crônicas sobre a vida em tempos de pandemia” (2021).

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2 respostas para “O que nos move a ir ao encontro daqueles que sofrem?”

  1. Avatar de Maria Anita Falcão de Oliveira
    Maria Anita Falcão de Oliveira

    Bom dia, Bia!

    Muito interessante ouvir o relato da Irmã Aurora. tive a oportunidade de conhecê-la, sua dedicação me impacta bastante. Parabéns pelo texto, Bia.

  2. Esse testemunho da irmã Aurora é muito forte, mas só quero fazer uma observação: você não escolheu o serviço social,foi o serviço social que te escolheu.

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