João Sérgio Caciola foi condenado a mais de 12 anos de prisão por crime ocorrido em 2020, mesmo ano em que cometeu uma série de estupros na cidade
Cecília França
Imagem: Caciola durante julgamento/Reprodução Youtube
O tribunal do júri condenou, na tarde desta quinta-feira (9), em Londrina, o mecânico João Sérgio Caciola a 12 anos, 7 meses e 12 dias de prisão pela tentativa de feminicídio e sequestro da jovem Desire Gonçalves Robledo. Os crimes aconteceram na madrugada de 20 de abril de 2020, quando Caciola já era procurado pela polícia pela prática de três estupros naquele mesmo ano.
A denúncia de Desire levou à prisão do mecânico, que permanece preso desde então e já foi condenado por ao menos um dos estupros, cometido em 18 de abril de 2020 contra uma jovem em situação de rua. A mulher estava grávida quando ele a violentou, roubou e abandonou em um matagal.
O julgamento de ontem reconheceu a ocorrência do feminicídio para além das relações íntimas e intrafamiliares. Vítima é réu não se conheciam. A investigação policial classificou o crime como uma tentativa de homicídio simples, mas o MP teve a inciativa de denunciá-lo com base no inciso II da Lei do Feminicídio (Lei 13.104/2015), que prevê o crime por “menosprezo à condição de mulher”.
De acordo com o processo, Caciola atropelou a jovem em um ponto de ônibus, na madrugada de 20 de abril, a obrigou a entrar em seu veículo e a permanecer nele, enquanto trafegava pela cidade e a espancava. Desire jogou-se do carro em movimento e foi socorrida por populares.
Neias-Observatorio de Feminicídios Londrina defende a leitura da lei dada no caso de Caciola. Silvana Mariano, porta-voz da organização, ressalta que a interpretação vem ao encontro da aplicação integral da Lei do Feminicídio.
“A violência doméstica e familiar mata muitas de nós mulheres, mas não somente. O menosprezo a mulheres manifesta-se nos mais variados contextos e inclusive entre pessoas sem qualquer contato anterior, como era o caso desta vez, em que vítima e réu eram pessoas desconhecidas entre si”, destaca.
Para a socióloga, há diferentes fatores que contribuem para a limitação das denúncias de feminicídios por violência doméstica e familiar. Dentre eles, cita fatores estruturais, a própria limitação da Lei Maria da Penha e as estruturas dos órgãos responsáveis pelas investigações.
“Há fatores estruturais que, ao naturalizar a violência contra mulheres em diferentes ambientes, inclusive públicos, não os percebe como violações dos direitos das mulheres motivados por relações de gênero. Há o fato de que a própria Lei Maria da Penha, sendo relativamente nova entre nós, ainda depende de reforços cotidianos para sua consolidação. Assim, quando se trata de violência contra mulheres, esta lei acaba por ser a moldura de análise e hoje ela é limitada, porque trata apenas de violência doméstica e familiar”.
A porta-voz ressalta que a Lei Maria da Penha encontra-se defasada quando comparada ao cenário internacional de legislações de proteção às mulheres.
“Por mais paradoxal que possa parecer, ao visibilizar a violência doméstica e familiar, no Brasil, acabamos por ocultar outras formas de violência contra meninas e mulheres. Os organismos de monitoramento da Convenção de Belém do Pará consideram que atualmente existe uma segunda geração de leis de enfretamento à violência, as chamadas leis integrais, que incluem outras formas de violência contra mulheres, especialmente no espaço público. Essas leis de segunda geração são integrais. A Lei Maria da Penha é da primeira geração, portanto, hoje está defasada no cenário internacional”, pontua.
Feminicídio para além das relações íntimas
Silvana Mariano, porta-voz de Néias, destaca outros crimes que organizações internacionais de defesa dos direitos das meninas e mulheres têm lutado para classificar como feminicídios, dentre eles os que envolvem mulheres em situação de prostituição, mulheres transexuais, mulheres em envolvimento com drogas ou tráfico e infanticídio.
“Têm sido as principais situações para os quais as organizações feministas têm tentado chamar atenção para a ocorrência de feminicídios, por meio da compreensão do menosprezo às meninas e mulheres, por sua condição de gênero”, alerta.
Hoje, Néias emitiu nota sobre o resultado do julgamento de ontem, na qual reforça sua defesa por uma leitura integral da Lei do Feminicídio.
“Consideramos esta classificação um avanço, pois reforça para a sociedade o feminicídio como o que ele é: um crime cometido pelo mais puro menosprezo à vida e à dignidade das mulheres. O que ouvimos no Tribunal nos lembra que na sociedade patriarcal, machista e misógina na qual vivemos a violência de gênero se faz presente em todos os lugares, para além dos limites das residências e das relações intrafamiliares.”
A organização destaca que “Durante o julgamento foi exposta a ampla ficha criminal de João Sergio Caciola, incluindo crimes de violência doméstica e crimes sexuais. Apenas em 2020 ele é acusado de ter cometido três estupros em Londrina. A defesa pediu a desclassificação da tentativa de feminicídio para lesão corporal, porém, as evidências apresentadas pelo Ministério Público e assistência de acusação foram mais convincentes. O júri também rejeitou a tese da defesa de semi imputabilidade do réu.”
Néias segue alertando para a vulnerabilidade das sobreviventes de feminicídios.
“O caso também gera angústia diante do desamparo da vítima e nos lembra de tantas outras mulheres sobreviventes que precisam contar apenas com si próprias para refazer a vida após experiências violentas. Naquela madrugada, Desire saltou do carro em movimento para salvar a própria vida. Agora, a partir da condenação de seu algoz, precisa retomá-la. Esperamos que esse caso, visto a partir da ótica da sobrevivente, levante o debate sobre a necessidade de ampliação das redes de apoio e da criação de medidas compensatórias para essas mulheres, vítimas de seus agressores, mas, também, da nossa estrutura social.”
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