Para psicóloga, situação piora entre mulheres negras e periféricas que temem a falta de renda, moradia e alimentação
Cecília França
As consequências da pandemia da covid-19 agravaram o cenário da saúde mental no mundo todo e o impacto de qualquer crise, seja ela sanitária, econômica e social, é muito diferenciado para homens e mulheres; para mulheres brancas e mulheres negras; para mulheres de classe média alta e mulheres em situação de vulnerabilidade. Como ter saúde mental sem garantia de emprego, renda e alimento na mesa?
O simples fato de ser mulher em uma sociedade patriarcal, machista e misógina, em que internalizamos papeis e ideais como se fossem da nossa natureza, propicia o adoecimento psíquico. Porém, falar no grupo “mulheres” sem observar suas especificidades desvirtua a realidade.
“Eu, enquanto mulher preta de origem periférica, acredito ser de extrema importância termos este olhar, que é bem recente, para as especificidades que nos divergem, pois vivemos em um país estruturado pelo racismo, onde nós, mulheres pretas, além de termos que lidar com todos os atravessamentos que vêm simplesmente pelo fato de sermos mulheres, sofremos diretamente, em tempo integral, os efeitos psicológicos de viver em uma sociedade racista”, pontua a psicóloga clínica Fansley Cristina Silva, de Londrina.
Mulheres sustentam sozinhas mais da metade dos lares brasileiros (50,8%), sendo que 56,5% deles (cerca de 21,5 milhões de lares) são chefiados por mulheres negras. Os dados são do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese).
“Desde o nascimento a mulher negra é a que mais sofre violência obstétrica; durante a infância, no contexto escolar, a criança negra lida com acontecimentos que são desdobramentos do racismo, marcando sua subjetividade; na adolescência e na juventude a população negra é a que mais sofre violência policial. Todos esses fatos evidenciam que, ao longo da vida, uma pessoa negra lida o tempo todo com o racismo estrutural e para as mulheres negras, isso se acopla com os efeitos que vêm do patriarcado”, adiciona.

Os lares chefiados pelas mulheres negras são os mais afetados pela pobreza, conforme mostrou pesquisa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 2022. Em 63% deles há algum patamar de insegurança alimentar, que pode ser leve, moderada ou grave, quando se configura a fome.
Fansley destaca que é impossível se manter saudável nessas condições, pois a privação do básico nos mantém em estado constante de alerta.
“A pessoa nessa condição não vive, apenas sobrevive, existe e não consegue se reconhecer como potente e produtora de possibilidades, de sonhos, e não consegue se posicionar como agente social e político. A maioria das pessoas pertencentes a essas condições de privação são negras e, a partir disso, penso que manter a população nestas condições faz parte de um projeto genocida”, define.
Não é possível ter saúde mental com privações
A Lume ouviu doze mulheres de Londrina, por meio de um questionário com 13 perguntas, sobre saúde mental e sua relação com as privações econômicas. Oito delas concordam que “Não é possível ter saúde mental com privações como falta de emprego, moradia e alimentação”.
“As preocupações com o básico aumentam ansiedade e desenvolvem todas as questões da fragilidade psicológica”, aponta uma das entrevistadas, mãe solo de 40 anos, preta, autônoma e moradora de um bairro periférico.
“A aposentadoria que eu ganho não dá para sobreviver o mês todo, tem que comprar remédio, alimentação…Eu conto com a ajuda de amigos”, diz uma mulher negra de 41 anos, transexual, com deficiência física e que mora em um pensionato.

Outra, que se reconhece como parda, de 36 anos, moradora de uma ocupação na zona Norte de Londrina aponta o alto custo de vida como agravante. “Hoje em dia tudo está caro, o emprego exige muita coisa e acabo não arrumando emprego. Eles poderiam ajudar mais empregando e baixando os valores dos alimentos”, sugere.
Dentre as mulheres ouvidas, cinco são brancas, três pretas e quatro pardas. Cinco delas não têm renda garantida e dentre as sete que têm, cinco são de até um salário mínimo. Dez dentre doze afirmam estar com a saúde mental abalada.
Cinco recorrem a tratamentos para a saúde mental. A maioria, terapia com psicólogos. Outras três já recorreram, mas não no momento. Dentre as que não fazem qualquer tratamento, apenas uma diz não sentir necessidade. Os fatores apontados como limitadores do acesso a tratamentos são preço, distância de casa e falta de tempo.

Não fique sozinha
A psicóloga Fansley Cristina da Silva sugere às mulheres que não têm condições financeiras ou tempo para buscar ajuda profissional que não fiquem sozinhas. Procurem, por exemplo, serviços culturais e de lazer oferecidos de forma gratuita.
“Aqui em londrina temos o projeto Ginga Londrina, que oferece aulas de capoeira gratuitamente em todas as regiões da cidade. Temos outros projetos, eventos e serviços que são, inclusive, divulgados aqui pela Rede Lume. Estes espaços proporcionam o estar com o outro, estar em grupos, e isso viabiliza a construção de vínculos, rede de apoio afetiva e social, favorecendo a manutenção e melhoria do bem-estar e saúde mental”, esclarece.
Saúde mental deve ser reestruturada
A psicóloga lembra que o governo de Jair Bolsonaro (PL) favoreceu o enfraquecimento da Rede de Atenção à Saúde Psicossocial (RAPS) e do Sistema Único de Saúde (SUS) como um todo, dificultando o acesso a serviços como o de saúde mental.
“Houve um direcionamento recorde de investimento em instituições privadas e de caráter religioso, que partem de pressupostos de que o sofrimento psíquico está relacionado a ‘falhas morais e maldições’, que só podem ser curadas através da religião. Esse show de horror inclui torturas, humilhações e doutrinas religiosas, interferindo no cuidado médico, discriminação de gênero, raça e sexualidade que fogem do padrão hétero normativo e patriarcal”, pontua.
Ela espera que o governo Lula (PT) fortaleça o SUS e os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS). “E que se estruture uma área dentro do Ministério da Saúde que trate especificamente da saúde mental, afim de desenvolver políticas públicas que ajudem a população em estado de vulnerabilidade social e que sofre com transtornos psiquiátricos. Tivemos um enorme retrocesso na área e isso precisa ser recuperado com urgência”.
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