Beatriz Herkenhoff e Desirée Cipriano Rabelo*

Na crônica “O medo da solidão” reflito sobre o crescimento da solidão entre crianças, adolescentes, jovens e adultos.

Para dar um salto da solidão para a solitude preciso criar momentos para estar a sós comigo, gostar da minha companhia, abrir-me para pessoas significativas, que trazem alegria e amor ao meu cotidiano. Renovar os grupos sociais e de amizade e também colocar-me à serviço daqueles que nada tem.

Nessa dinâmica, a aproximação com os vizinhos pode ser uma rica possibilidade de ampliação dos grupos sociais e fortalecimento dos vínculos de amizade.

São muitas as vivências positivas de solidariedade entre vizinhos, gestos de atenção que fazem a diferença na vida de pessoas que estão só, mas também contribuem para o desenvolvimento saudável de crianças e adolescentes.

Construções coletivas que criam raízes e sentimentos de pertencimento.

Passei minha infância e adolescência brincando com os vizinhos. Tínhamos livre acesso às casas. Explorávamos os morros próximos, jogávamos bola, brincávamos de pique, tomávamos banho de chuva, saboreávamos manga, cajá, goiaba, laranja, mexerica das árvores frutíferas dos vizinhos. Nossos pais também estabeleciam relações de amizade e confiança com os vizinhos.

Quando mudei para Vitória, ES, em 1975, encontrei uma realidade bem diferente. Um número cada vez maior de prédios sendo construídos e a relação de vizinhança enfraquecendo.

Qual seria a razão do distanciamento já que estávamos mais próximos do que nas casas? As pessoas não tinham mais tempo para uma boa prosa? Chegavam em casa cansados do trabalho e precisavam recuperar a energia para o dia seguinte? Aumentou o individualismo? O fechamento na própria família? Cresceu a desconfiança em relação ao temperamento do vizinho e sua capacidade de viver em grupo?

Quando moramos em condomínio é possível encontrar vários tipos de vizinhos: os reclamões, os provocadores, os barulhentos, os fofoqueiros. E por receio, muitas vezes não estabelecemos novos laços. Nem sempre é fácil partilhar espaços comuns com pessoas com costumes e opiniões diferentes. Por outro lado, podemos exercitar a tolerância, a empatia, o diálogo e acolher o outro em suas diferenças.

Quando fechamos nosso coração, perdemos grandes oportunidades porque existem vizinhos amorosos, alegres, sensíveis, cooperativos, respeitosos, que gostam de dialogar, somar e contribuir. Pessoas que sabem transformar a vizinhança num espaço acolhedor. Que valorizam as trocas e ajudas mútuas.

Só despertei para a importância dos vizinhos quando morei em Belo Horizonte, MG (1985-87). Fomos acolhidos por vizinhos atenciosos e carinhosos. Desde o início nos incluíram e envolveram nos encontros e festas que faziam no condomínio. Ficamos amigos e, quando voltamos para o Espírito Santo, eles fizeram uma festa de despedida.

Foram momentos emocionantes e permitiram que eu ficasse atenta e aberta para minha vizinhança. 

Moro há 31 anos (desde 1992) no mesmo edifício na Praia do Canto, Vitória, ES. E tivemos uma vizinha que nos marcou pelo seu jeito alegre, amoroso e cuidadoso. Dona Cândida plantou a semente da solidariedade, do amor e da atenção aos vizinhos. 

Com 94 anos ainda era ativa e animada, após caminhar, ia para a cozinha fazer pães, bolos, biscoitos de nata, empada de carne seca, de frango, de maçã, entre tantas outras especialidades. 

Sempre levava suas gostosuras para os vizinhos e toda semana fazia bolo de laranja para as crianças do nosso prédio. Também descia com suco, café, bolo e biscoitos de nata e reunia as vizinhas para um bate papo na portaria. 

Apesar das iniciativas de dona Cândida para envolver os moradores, nunca fizemos uma festa com os vizinhos. Mas ainda temos tempo para essa iniciativa.

Desirée e seu esposo Euler são exemplos da capacidade de articular os vizinhos e envolvê-los em atividades que criam laços de confiança e amizade. Por isso convidei-a para escrever esta crônica comigo.

Com a palavra Desirée: “Ao longo da minha vida morei em quase 10 cidades no Brasil e no exterior”. 

“Basicamente, desde jovem estive longe de minha família. Talvez, por isso, aos poucos fui descobrindo os vizinhos.” 

“Minha primeira experiência maravilhosa nesse sentido foi em Minas Gerais. Famosos por sua capacidade de acolher, tive vivências incríveis com os mineiros. Destacaria o dia em que uma amiga vinda de outro estado foi me visitar, mas eu estava viajando. E, acreditem, meu vizinho que nunca tinha visto essa pessoa, acolheu-a e convidou-a a hospedar-se em sua casa enquanto me aguardava.”

“Em Campo Grande, Mato Grosso do Sul, morávamos em casa e foi muito interessante a convivência com a vizinhança. Fazíamos muitas confraternizações, dentre elas a festa junina que reforçava o espírito de união e mutirão.” 

“Mas, sem dúvida, minha vivência mais significativa foi em Vila Velha, onde residimos por 20 anos. Nos dois prédios em que moramos estabelecemos uma rede de vizinhança que se tornou e segue sendo como nossa família. Nossos filhos cresceram juntos, viajamos em grupo (com alguns deles até hoje). Uma época, a cada mês, um apartamento oferecia um jantar e os demais moradores levavam as bebidas.”

a jornalista Desirée Rabelo/ Foto: Arquivo Pessoal

“Aos poucos passamos a organizar regularmente festas juninas, e também celebrações no dia das Mães, Natal e Ano Novo (onde acontecia uma saudável competição da queima de fogos mais bonita com os prédios ao lado).”

“Certa ocasião, reunimos as crianças do prédio para uma noite de pijama.  Fizemos quitutes gostosos e convidamos um contador de histórias. Os adolescentes ficaram tão encantados que de madrugada foram chegando com seus colchões, pedindo para dormir juntos. Noutra vez, organizamos uma noite de talentos onde os pequenos e os maiores se apresentaram. Até hoje me emociono ao lembrar desses momentos.”

“Redes desse tipo são importantes, porque são escolhas que a gente faz. Passamos a acreditar em pessoas que até há pouco eram desconhecidas, investimos nas relações, cultivamos vínculos, aprendemos a conhecer e a respeitar. Saímos do isolamento e nos enriquecemos neste encontro. Para isso é preciso deixar o coração e a porta da casa abertos!”

“Diferente da família que nos é dada, a relação de vizinhança é construída. Sou muito otimista e sempre vejo possibilidades.”

“Hoje moro em Barcelona, Espanha e o desafio é maior. Mas enquanto não tenho a tal rede com “mis vecinos” já possuo muitos amigos, inclusive catalães. E sei que por todos os lugares aonde for com minha família nunca estaremos sozinhos. Sempre há pessoas no outro andar ou na próxima quadra que estão de coração aberto, prontas para um sorriso e um convite para um cafezinho ou um vinho…”

E vocês? Que experiências poderiam contar da relação com os vizinhos? Que diferença fizeram em sua vida?

Às vezes temos medo de ir ao encontro e nos decepcionar, mas sempre vale a pena o risco, pois os ganhos são maiores do que as perdas. Mais ainda em tempos em que a solidão aumenta.

Na próxima crônica contarei a rica experiência de vizinhança nos bairros da periferia: Fonte Grande e Piedade. Maria Anita Brasileiro Falcão tem histórias incríveis de união entre os vizinhos, de proteção a vizinhas vítimas de violência, de gestos lindos de partilha do alimento, de cuidado coletivo das crianças, de brincadeiras nos quintais dos vizinhos, de campanhas de solidariedade, entre outras.

*Beatriz Herkenhoff é assistente social. Professora aposentada do Departamento de Serviço Social da UFES. Com doutorado pela PUC-SP. Autora do livro: “Por um triz: Crônicas sobre a vida em tempos de pandemia” (2021).

*Desirée Cipriano Rabelo é jornalista, pesquisadora e professora aposentada da UFES, vive atualmente em Barcelona onde atua como coordenadora de comunicação da Associação Casa da Gente Brasil-Catalunha.

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3 respostas para “A potência da rede de vizinhança”

  1. Sua crônica veio despertar o cantinho das recordações. Não é saudosismo, nem aquela “chatura de no meu tempo…” Não. Somente a lembrança de um tempo que passou, um tempo em que famílias moravam em casas e o “playgraound” era a rua. Um tempo em que todos cuidavam de todos e os vizinhos se solidarizavam, inclusive doando gêneros alimentícios a quem, eventualmente, estava em dificuldades. Talvez seja difícil acreditar, mas, asseguro, do alto dos muitos anos vividos, esse tempo existiu. Sim.

  2. Muito bom Beatriz!
    Fazer um mundo melhor, depende de nós.

  3. Avatar de marjolima2012
    marjolima2012

    Assunto que faz parte da vida de todos porém pouco escolhido para crônicas e reportagens. Parabéns às duas cronistas.

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