Beatriz Herkenhoff e Maria Anita Brasileiro Falcão*
Fotos: Arquivo Pessoal
Durante os anos 1970-1990 convivi com moradores de diferentes bairros da periferia da Serra (ES). De segunda a sexta, eu ia de casa em casa com o objetivo de mobilizá-los na luta por saneamento básico, iluminação pública, escolas, postos de saúde, transporte, entre outros.
Ficava impressionada como era recebida com alegria. Mesmo em meio à tanta pobreza, sempre ofereciam um cafezinho e um caldo quentinho. A convivência entre os vizinhos era marcada pela luta, afetividade e cuidado.
Minha amiga Anita também contava histórias lindas sobre os vínculos de amizade e solidariedade entre os seus vizinhos no bairro da periferia Fonte Grande, em Vitória (ES).
Num mundo em que cresce a indiferença e o individualismo, experiências humanas nos fazem acreditar na força do amor e da transformação.
Seus avós mudaram em 1951 para o bairro Fonte Grande. Moravam no município de Iconha, interior do Espírito Santo, onde realizavam um trabalho análogo à escravidão. Seu avô decidiu fugir com sua esposa e nove filhos.
Caminharam como retirantes, sua irmã residia no bairro Fonte Grande e os recebeu. Os moradores fizeram um mutirão para que tivessem um cantinho para morar: as paredes eram de tecidos velhos e a cobertura de lonas. Posteriormente, edificaram uma casa de estuque, barro e palha.
Quando as tias foram trabalhar no Rio de Janeiro, ajudaram na construção de uma casa de alvenaria com telhado de Eternit, chão de cimento e a sala tinha assoalho de madeira.
Ter uma moradia digna fez toda diferença na vida deles e de seus descendentes.
A convivência com os vizinhos era plena de amor e alegria. O fogão a lenha ficava no quintal dos avós. A vizinhança reunia para assar batata doce e banana-da-terra, fazer galinhada, cozido e moqueca com peixe barato. O preparo do cozido era coletivo, todos iam provando, acrescentando ingredientes e temperos. A alquimia dos sabores envolvia a participação de todos.
Na periferia não existe vida sem vizinhos. A união garante a sobrevivência. As crianças são cuidadas por todos, a casa é cuidada por todos, o alimento é partilhado. As festas são intensas, alegres e envolvem a comunidade.
Com a palavra Anita:
“O bairro Fonte Grande sempre foi um lugar de muita amizade e carinho entre os vizinhos.”
“Quando eu era criança, adolescente e até na juventude faltava muita água no bairro. Passávamos o verão todo sem receber água encanada. Meu pai construiu uma caixa d’água imensa. E os vizinhos desciam o morro para buscar água em nossa casa.”
“Minha avó e minha mãe eram lavadeiras. As lavadeiras desciam com as trouxas e passavam o dia lavando roupa na fonte São Benedito. O lanche e o almoço eram divididos.”
“A fonte São Benedito era um lugar de trabalho, de encontro, cumplicidade e bem-querer. Enquanto trabalhavam, elas compartilhavam o material para lavar as roupas e o ferro a brasa. Nessa ciranda rolavam confidências, histórias tristes e engraçadas.”

A palavra ocupava um lugar central na interação entre as mulheres. E elas eram empoderadas através da cooperação e da generosidade.
“As filhas jovens davam inúmeras viagens para buscar as roupas já lavadas, também carregavam latas d’água para abastecer as casas. Nessas idas e vindas conversavam sobre assuntos que eram proibidos em casa. Obtivemos as primeiras informações sobre sexualidade nessas interações.”
“No tempo da minha avó e da minha mãe, as mulheres não trabalhavam fora, nas horas de folga, sentavam no quintal para conversar, reuniam para um café com bolinho de chuva e polenta doce.”
“Muitos faleceram, mas os familiares deram continuidade aos laços de amizade. Quem mudou do bairro vem nos visitar ou passar o Ano Novo.”
“Desenvolvemos desde a mais tenra idade um espírito de comunidade. As famílias mais pobres que sofriam insegurança alimentar sempre foram ajudadas pelas demais famílias.”
“Durante minha infância, as crianças eram muito ligadas, brincávamos de correr o dia inteiro, vivíamos sujas e suadas, subíamos nas árvores frutíferas como jaca, manga e goiaba. Frequentávamos as casas uns dos outros, e nos fazíamos presente nos momentos de doença e morte.”

“Tínhamos uma vizinha que o marido era violento. Nós não entrávamos na casa para defendê-la, mas ela fugia e se abrigava em nossa casa. E quando o marido gritava para a gente colocá-la para fora, não acatávamos. Ela era mantida em segurança.”
“No Natal e Ano Novo todos preparavam uma mesa bonita. As portas ficavam abertas e as famílias circulavam pelas casas para dar um abraço e participar da ceia. Começávamos visitando as casas de baixo e íamos subindo o morro.”
“As famílias eram pobres, mas as mesas eram fartas, tinha frango, carne assada, frutas locais, arroz à grega, farofa e salada com frutas. Todas as casas tinham o mesmo cardápio, mas cada uma se destacava por determinado prato, por exemplo, o arroz à grega da minha mãe era inigualável.”
“As festas de São João também eram lindas. As famílias mais antigas acendiam a fogueira e colocavam em comum a canjica, o cuscuz, o mingau de tapioca, o licor de jenipapo, a batata doce e a banana na brasa.”
“Jenipapo era uma fruta abundante no bairro da Fonte Grande. O licor de jenipapo era uma das especialidades da minha avó. O preparo envolvia ciência e técnicas especiais. Todos aguardavam com expectativas.”
“Os quintais eram abertos porque as famílias não tinham condições financeiras para fazer o muro. Os quintais continuam abertos até hoje.”
Quintais sem limites, portas abertas, mãos estendidas, corações quentinhos e aconchegantes. Amor que transborda e reduz as privações causadas pela pobreza, pelo desemprego, pela violência e pelo abandono.
Ao ouvir os relatos de Anita fico pensando que quem muito tem, muitas vezes se fecha num mundo egoísta e individualista. E quem pouco tem não retém nada. E é essa partilha que os fortalece na luta pela sobrevivência e no enfrentamento de tantas dores e perdas.
Anita continua: “Dona Zuca marcou nossa infância. Era uma vizinha incrível. Dava liberdade para as crianças brincarem livremente em seu quintal. Conversávamos qualquer assunto com Dona Zuca porque ela era mais aberta. Com frequência nossas famílias reuniam para almoçar e lanchar. Ela e minha mãe morreram no mesmo ano. Mas, os descendentes mantiveram o vínculo de amor.”
“Dona Zuca sentia-se orgulhosa por ter dado o primeiro banho nas crianças da Fonte Grande.”
Todas as pessoas com menos de 50 anos que residem no bairro, tomaram o primeiro banho com dona Zuca.
“Quando meus filhos nasceram, os conceitos tinham mudado e o banho não era mais um segredo, mas eu fiz questão que dona Zuca desse o primeiro banho nos meus filhos. Era uma tradição entre os vizinhos.”
Essas vivências em comunidade foram cultivadas. Criaram raízes e pertencimento. Memórias afetivas que renovam a esperança. E que são contadas de geração em geração.
Ao reler essas lembranças, fico pensando que a comunidade se uniu em torno dos quatro elementos fundamentais da natureza: o fogo (fogueira São João; fogão a lenha no quintal), a água (além da Fonte São Benedito, tinham mais quatro fontes de água no bairro), a terra (as crianças rolavam na terra ao brincar, os moradores misturavam o barro para construir as casas em mutirão) e o ar (além do ar puro no alto do morro, todos tinham muito fôlego ao subir e descer as escadarias inúmeras vezes).
O fogo, a água, a terra e o ar! Fonte de vida em plenitude.
Com o aumento da violência nos últimos 20 anos, o medo também se fez presente em algumas circunstâncias.
Quais os impactos da violência no cotidiano do bairro Fonte Grande? Como os moradores deram continuidade aos legados de solidariedade, fé, união, partilha, generosidade, confiança e amizade deixados por seus antepassados?
Na próxima crônica descreveremos outras forças agregadoras que mantêm os moradores da Fonte Grande unidos em torno de objetivos comuns.
Eu e Anita desejamos que essas reflexões possam nos tirar do lugar do conforto e motivar para irmos ao encontro daqueles que menos têm. Temos muito a aprender com eles.
*Beatriz Herkenhoff é assistente social. Professora aposentada do Departamento de Serviço Social da UFES. Com doutorado pela PUC-SP. Autora dos livros “Por um triz: Crônicas sobre a vida em tempos de pandemia” (2021) e “Legados: Crônicas sobre a vida em qualquer tempo.
*Maria Anita Brasileiro Falcão é assistente social das prefeituras de Vitória e Serra, com formação em saúde da população de rua. Sambista. Catequista de Comunidade Eclesial de Base. Militante do Movimento Negro. Vice-presidente da Escola de Samba Unidos da Piedade. Bisavó.
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