Mãe de menino autista e ativista, Saraí Brito criou a Autimizar para apoiar e conscientizar mães sobre a luta por serviços públicos de qualidade
Cecília França
Foto: Saraí com o filho Pablo/Márcio Yuji Fukuji
Quando se aproxima o dia 2 de abril, Dia Mundial de Conscientização do Autismo, surgem muitas postagens nas redes sociais e ações nas quais participantes são convidados a usar a cor azul ou elementos como a fita colorida construída com peças de quebra-cabeças, símbolos do autismo. São ações válidas, mas representam pouco se estiverem desacompanhadas de atitudes realmente garantidoras de direitos para essas crianças e adolescentes.
“Para quem não faz nada, um post já ajuda. Mas quando você se depara com todo o descaso público, para e reflete: dia 2 de abril, o que temos para comemorar? Um balão azul não é o que uma criança precisa.”
“Representatividade não é fazer um post dizendo que apoia. As peças só vão se encaixar quando a criança e adolescente autistas tiverem dignidade, sendo atendidas integralmente em seus direitos. Por exemplo, acesso a escola sem direito a professor de apoio, sem material adaptado para ele, rasga a lei, porque não adianta”.
A fala é da psicopedagoga Saraí Brito, mãe de Pablo, menino autista de 7 anos, e fundadora da Autimizar, uma associação que busca apoiar mães na cidade de Londrina. Sua luta é focada no empoderamento dessas mulheres, para que possam entender os direitos de seus filhos com autismo e lutar por eles.
“Não é um trabalho de ‘blogueirinha do autismo’. Eu dependo totalmente do serviço público. Hoje, felizmente ou infelizmente, me tornei liderança dessas mães” afirma.
É fato que sabemos muito mais hoje sobre o Transtorno do Espectro Autista (TEA) do que há alguns anos. A causa ganha visibilidade, mas isso não tem repercutido em garantia de direitos para essas crianças e adolescentes, na opinião de Saraí.
Ela critica as campanhas que entendem como conscientização sobre o autismo somente iluminar espaços públicos com a cor azul ou estampar placas de empresas parceiras da causa.
“Conscientização eu faço aqui numa conversa com você, eu faço na porta da escola enquanto estou esperando o filho. O que a gente precisa é de política pública”, define.
“Quando tive o diagnóstico de autismo do filho passei por poucas e boas por conta de falta de medicação, falta de orientação, vivia perdida, não tinha noção nenhuma. Eu não tive nenhuma igreja que me socorreu, nenhum projeto social, passei por conta própria.”
“Aí dei uma respiradinha e criei um grupo de apoio para mães de autista que tem um diagnóstico e se sentem perdidas, passam pela fase do luto, todo esse questionamento de não entender”, relembra a ativista.
Assim nascia a Autimizar. Além do apoio emocional, a associação lida com carências materiais diversas dessas mães que, na maioria das vezes, dedicam-se exclusivamente aos filhos. Muitas enfrentam, como agravante, uma série de violências, sociais e domésticas.
“Eu sempre trabalhei com cultura de doação, de caridade. Faltava muita coisa no grupo, aí eu fui tentando ajudar uma, outra, com as minhas forças, no pedido mesmo. Mas foram entrando mais mães, a situação mais difícil, e eu comecei a fazer visitas domiciliares toda semana.”
“Aí eu via aquela situação, mãe nas comunidades, famílias carentes. Uma a gente socorria com alimento, com cesta básica, e senti a necessidade de fazer uma rede de proteção, de apoio para essas mulheres”.
“Não basta o laudo do filho, não basta a vulnerabilidade social, tem outras questões, como a violência doméstica, o abandono público. Aí entrei para o Grupo Mulheres do Brasil. Eu preciso estar atualizada, fortalecida, para eu conseguir fortalecer outras mulheres. Esse é meu ponto de vista”, explica Saraí.
Naquele momento a ativista passou a utilizar a rede social Instagram para divulgar conteúdos de conscientização sobre autismo e este se tornou mais um canal de contato com as mães e de cobrança do poder público. Passaram a surgir empresas interessadas em doar alimentos, roupas, entre outros itens. O grupo da Autimizar hoje soma 195 mães.
“A partir de uma postagem para prestação de contas de uma doação, começaram a surgir novos interessados em doar. Eu vou, faço a entrega domiciliar, tiro foto para mostrar para a empresa. Então eles ajudam justamente por ver e entender como é o processo”, diz a ativista.
O atendimento do autista pela educação
Saraí utiliza as redes públicas de saúde e educação para tratamento e atendimento do filho Pablo. Um de seus principais eixos de luta é a real inclusão do autista no direito à educação. Segundo ela, a rede municipal de Londrina não tem garantido professores de apoio com regularidade e há muito desconhecimento por parte dos profissionais.
“Questionei na ouvidoria (da prefeitura) que cada dia era um professor de apoio e ouvi como resposta: ‘Não é abandono da educação especial, porque ele está sendo atendido’. Eu disse: ‘O autista precisa de regras e rotina. Quebra de rotina desencadeia toda uma série de transtornos e eu, enquanto mãe, não me preocupo só com meu filho estar desregulado na escola.’”
“É transtorno para ele, para as crianças que estão em volta, que não entendem o que está acontecendo; transtorno para o profissional, que tem que lidar com trinta e mais o meu. Então não estou brigando só pelo meu filho’”, enfatiza Saraí.
De acordo com ela, além do revezamento de professores de apoio, que prejudica a criação de vínculo com a criança, outras mães relatam ausência desse profissional em outras escolas. Uma delas, inclusive, teria sido orientada a manter o filho em casa até que se efetive a contratação deste profissional.
“O argumento é que a educação não tem dinheiro para contratar professor de apoio. No começo do ano a desculpa é que não estavam preparados, estavam chegando muitos laudos de autismo nas escolas. Eu questiono: há 20 anos estão falando que a escola não está preparada para a inclusão. Até quando eles vão usar esse argumento?”.
A Lume questionou a prefeitura sobre a oferta de professores de apoio nas escolas, por meio da assessoria, mas não recebeu retorno até o fechamento dessa matéria.
O ‘mercado’ do autismo
O maior conhecimento sobre o TEA nos últimos anos trouxe outra consequência: o encarecimento de serviços para essas crianças e adolescentes.
“Eu tenho muitas mães que precisam passar por neuropediatra e não tem, não existe pelo SUS. E está tudo muito caro. O mercado ‘autístico’ está assim: consultas que eram R$ 350 foram para R$ 900. A demanda começou a crescer, então o preço dobrou. Tem médico que cobra R$ 1.400, sem retorno”, relata Saraí.
“Virou um mercado, infelizmente. Você tem que lutar contra a patologia, que já é um desgaste enorme, desgaste de escola, de educação, de família, de comunidade, de todo mundo para lutar contra. É um desgaste desumano, que vai te consumindo”.
Saraí lembra que autistas têm direito ao Benefício de Prestação Continuada (BPC), porém os requisitos limitam as fontes de receita da família e contribuem para manter a vulnerabilidade.
“Dizem que a lei é para todos, porém, a gente tem pessoas que são funcionários públicos, que tem cargo de vereador, deputado, senador, e tem uma empresa com 20 funcionários. Tudo bem. Uma mãe de autista não pode vender um produto da Natura, porque o autista tem direito ao BPC, só que ela tem que ser miserável para receber.”
“Se ela for casada e o marido tiver uma renda de pouco mais de R$ 1,2 mil, ela já não tem direito. Ela tem que ter uma geladeira que não gela, ter um fogão de duas bocas que só funciona uma. É uma política pública que você não faz ideia. Só pelo fato de ter um filho com deficiência, ela não poder trabalhar, porque não tem rede de apoio, só isso já deveria ser quesito para receber, para garantir medicação, comida e roupa. É gritante nossa luta por isso aí”, destaca.
Pablo, filho da ativista, passou dois anos na fila de espera por terapia. “Agora ele faz uma vez por semana, meia hora de fisioterapeuta, com psicólogo e com fonoaudióloga. Já é um ganho para quem ficou dois anos sem nada”, ressalta.
Saraí afirma que a visibilidade dada ao TEA nos últimos anos também tem feito surgir oportunistas, focados em oferecer assessoria e consultoria sobre inclusão “porque está na moda”. “Aí é pensando em lucratividade, não é para outra coisa”.
Ela comenta a importância de personalidades como o apresentador Marcos Mion, pai de um menino autista, darem visibilidade à causa, porém, ressalta que aquela não pode ser entendida como a realidade de todos os autistas.
“A medicação do filho dele é importada, o médico dele é dos Estados Unidos, os terapeutas vão até a casa dele fazer as terapias. Então ele não tem esse mesmo peso que a gente tem, de mães que não têm o básico. Ele luta sim por política pública, defende, dá a cara a tapa – ótimo. Mas não bate com a nossa realidade”, pontua.
Empoderamento das mães
Saraí entende que as participantes da Autimizar têm se sentido mais empoderadas para lutar por seus direitos. “Por elas me verem sair, correr atrás de comércio, empresa, elas começaram a fortalecer o grupo. Eu digo que somos uma cooperativa de mães, uma ajuda a outra. Agora, para a Páscoa, nós ganhamos 117 ovos. Uma mãe doou o trabalho, outra doou barras de chocolate, a outra deu a embalagem. Então é uma ‘cooperativona’”, exemplifica.

No seu entendimento, o projeto vai além de um atendimento, ele é humanitário e “faz o que o poder público não está fazendo”.
“É um atendimento afetivo, de rede de escuta, personalizado. Ano passado cheguei a criar, de segunda a sexta-feira, das 8 às 10 da noite, um tele escuta, porque a mãe não tem em quem se apoiar e a gente ouve muito que é ‘mimimi’, que está se vitimizando. Todas ali estão passando ou vão passar pelas mesmas coisas, então uma entende a outra. Às vezes é só isso que elas precisam, mas não tem psicóloga para elas pelo SUS”, destaca.
Saraí começou a trabalhar com 14 anos e até o ano passado se mantinha no mercado de trabalho como psicopedagoga. Porém, sentiu a necessidade de dedicar-se exclusivamente aos filhos, especialmente a Pablo (ela também é mãe de outro menino, de três anos).
“Passei pela fase de chorar o tempo todo, de pegar a dor para mim, de cair de cama e não saber como fazer. Hoje já respiro mais, já separo, uso menos a emoção e mais a razão. Porque eu tento mostrar para as outras mães que você não pode se contentar só com a miserabilidade, você precisa emergir das cinzas”.
Sobre a visibilização do TEA pela mídia, Saraí considera as pautas limitadas.
“Qual jornal noticia o índice de bullying escolar com autistas? Ninguém fala. Todo jornal coloca estatística do autismo – agora é um a cada 33 – mas qual a estatística de falta de professor de apoio? Ninguém tem esse olhar. Entre mães, você não tem noção do índice de suicídio ou da fala do suicídio. Todo mundo acha lindo falar, as instituições públicas, fazer um post, usar uma camiseta de combate ao suicídio, mas onde ele está, como eu previno?”, questiona.
Às vésperas do dia de conscientização, Saraí lançou no grupo a ideia de que as mães publicassem fotos com seus filhos autistas, como forma de mostrar orgulho. Para sua alegria, o engajamento foi grande e até aquelas que se mantinham mais quietas no grupo, enviaram seus registros.
“É esse trabalho de empoderamento da mãe atípica, invisível, porque ninguém a vê”.
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