Beatriz Herkenhoff e Maria Anita Brasileiro Falcão*

Fotos: Arquivo Pessoal

Na última crônica “Relações de vizinhança que fortalecem a comunidade” vimos como os moradores construíram legados de solidariedade e união na Fonte Grande, bairro periférico de Vitória, no Espírito Santo.

As casas estavam sempre abertas, as crianças eram cuidadas por todos e brincavam livremente no morro. Os quintais sem muros, possibilitavam almoços comunitários. Predominava a generosidade na partilha do alimento. Aqueles que pouco tinham, eram incluídos e acolhidos.

O afeto entre as famílias criava raízes e gerava sentimentos de pertencimento. As festas eram intensas, envolviam e mobilizavam todos. A cooperação entre as lavadeiras era exemplo de desprendimento. A palavra ocupava um lugar central através das trocas e confidências.

Após ler a crônica anterior, Marcela, filha de Anita escreveu: “Foi lindo reviver um pouco da minha história. Relembrei momentos em que ia para a Fonte São Benedito com minha avó”.

“Enquanto lavava roupa, ela cuidava da neta com seu carinho e afeto. A fonte era um lugar cheio de magia. Como ficávamos a manhã toda, minha avó levava lanche para mim.”

Marcela continua: “Eu sempre dizia para minhas amigas que minha avó nunca expressava palavras de carinho, mas tinha atitudes marcantes através da culinária”.

“Todos os dias ela variava o cardápio para atender aos diferentes desejos dos netos. Culinária amorosa que deixou em nossa memória cheiros e sabores que permanecem ainda hoje.”

Eu perguntei a Anita: “As gerações seguintes deram continuidade aos legados deixados por seus avós e bisavós?

“Como essas vivências afetivas contribuíram para lidar com a violência e a pobreza que cresceram nos últimos anos?”

Anita afirma que as gerações atuais perpetuaram os legados de solidariedade e convivência entre os vizinhos.

Atualmente ela é a matriarca da família. Carrega esse baluarte de resistência, amor e esperança.  

Anita é uma linda matriarca, agrega, une, motiva, empondera, solidariza, mobiliza. Está presente em todos os espaços que fortalecem a união e o espírito de amor no bairro.

É catequista na Comunidade Eclesial de Base. Participa de campanhas de Natal para as famílias vulnerabilizadas. É vice presidente da Escola de Samba Unidos da Piedade.

Anita relata que nos últimos 20 anos a violência aumentou no bairro. Começou com uma briga num jogo de futebol no alto do morro. A primeira morte desencadeou outras. Depois virou briga de tráfico. Mais mortes e famílias expulsas do bairro.

No alto do morro tinha torneio de futebol, festival de pipas, comemoração de Cosme e Damião e festa das crianças no mês de outubro.

O aumento do medo fez com que as crianças parassem de circular livremente no morro, muitas se trancaram em casa jogando vídeo games nas horas livres.

Mas existem movimentos de resistência que impedem que o isolamento entre as famílias predomine. Moradores se agrupam em várias ações que fazem a diferença e fortalecem as relações de vizinhança.

Com a palavra Anita: matriarca da comunidade

“Todo domingo reunimos para celebrar a palavra e temos missa duas vezes por mês. Após as celebrações, fazemos o café da manhã comunitário.”

Gestos simples que dão continuidade ao verdadeiro sentido da comunhão. Partilhar o pão e a vida. Colocar tudo em comum.

“Sou catequista e como tem crianças da comunidade que passam privações, no dia da catequese eu compro suco, pão, queijo, presunto para um delicioso café.”

“Quando as crianças vêm para a catequese querem permanecer mais tempo para brincar e jogar bola.”

“Este ano (2023), a campanha da fraternidade tem como tema Fraternidade e Fome. Estamos envolvendo as crianças na partilha dos alimentos.”

Uma formação comprometida com o amor começa na infância. Como posso incluir o outro na dinâmica de um mundo mais justo e humano? Gestos que valem mais do que as palavras.

“No mês de outubro, fazíamos missões com as crianças. Subíamos o morro, visitávamos as casas. Mas, atualmente não sentimos segurança para circular com as crianças.”

“A via sacra na Semana Santa também subia até o alto do morro. Era muito emocionante. Passamos a fazer a via sacra no entorno da igreja. Hoje a via sacra é mais dolorosa, pois, muitas pessoas perderam seus filhos.”

“Quando morre alguém, os moradores se reúnem para comprar uma coroa de flores e expressar o carinho e a solidariedade.

“A festa do Sagrado Coração de Jesus (nosso padroeiro) dura quatro dias. Damos continuidade ao exemplo de nossos antepassados, não vendemos nada, oferecemos canjica, cachorro quente, suco. É um momento inesquecível de encontro e troca entre as famílias.”

Parar para ouvir o outro. Sacralizar e repartir o alimento. Fortalecer corpos que estão cansados pelo trabalho duro ou mesmo pelo desemprego. Experiências inclusivas e agregadoras.

“A Escola de Samba Unidos da Piedade (a mais querida) também envolve muitos voluntários que vão para o atelier fazer as fantasias.”

“Com o aumento da competição entre as escolas, tivemos que profissionalizar. Mas, mantivemos o envolvimento, a cooperação e a alegria do encontro.”

“As famílias da Fonte Grande oferecem refeições para aqueles que estão trabalhando na confecção das fantasias e dos carros alegóricos nos barracões. Fazem dobradinha, cachorro quente, moqueca e pão com mortadela.”

“Há seis anos reunimos amigos e familiares numa campanha de Natal para presentear as crianças das famílias com menos recursos. No dia da entrega fazemos um lanche com cachorro quente, picolé, pipoca, suco, bolo e bombons.”

“Renato Santos é um morador antigo que também estimula a convivência entre os moradores. Resgatou as festas da Folia de Reis e do Jesus adolescente.”

Festa de Jesus Adolescente

“Possui o ‘Quintal Bantu’ que reúne os moradores em torno de momentos alegres. É professor de educação física e historiador. Mantém viva a memória do bairro. Constatou em seus estudos que a Fonte Grande foi um quilombo.”

“A festa de Cosme e Damião também é muito animada. As famílias sobem o morro e entregam para as crianças sacolinhas com doces, balas e bombons. Nesse dia, as crianças não vão para a escola.”  

Tradições que congregam e unem a comunidade.

Anita conta que tem três vizinhas com quem estabelece laços mais íntimos. Destaca Arlete, vizinha mais próxima.

“Ficamos penduradas no portão conversando sobre a vida, trocamos ingredientes, mudas de plantas, receitas, informações e confidências. Nossos filhos são amigos.”

“Marcela, minha filha também tem um vizinho de confiança que cuida do seu cachorro quando ela viaja. Trocam ingredientes quando falta alguma coisa.”

“Embaixo da casa tem uma área com vegetação rasteira que tem coelhos. Da varanda o vizinho recolhe sobra de legumes, verduras e leva para os coelhos.”

Gestos simples que demonstram como podemos cultivar e alimentar a força da comunidade.

Anita continua: “A natureza nos brinda com sua fartura e gratuidade. Quando subimos o morro para buscar jaca, limão e manga, ficamos tristes quando vemos casas de famílias queridas que não estão mais ali.”

“Mas a ausência tem também um viés de conquista, os filhos estudaram, melhoraram financeiramente e as famílias foram para um bairro mais baixo.”

“O residencial Santa Cecília, um prédio que fica no Parque Moscoso (centro de Vitória) tem muitos moradores que eram da Fonte Grande. O interessante é que tem moradores que gostavam de brigar e que agora vivem nesse residencial em harmonia.”

Estou há duas semanas mergulhada nesse diálogo com Anita. Experiências que me emocionaram. Temos muito a aprender em relação ao amor e serviço ao próximo. Que possamos nos envolver com as comunidades da periferia.  

Bairro Fonte Grande, em Vitória (ES)

Esse é um convite que eu e Anita fazemos: Vamos ressignificar nossa existência com gestos de solidariedade?

*Beatriz Herkenhoff é assistente social. Professora aposentada do Departamento de Serviço Social da UFES. Com doutorado pela PUC-SP. Autora dos livros “Por um triz: Crônicas sobre a vida em tempos de pandemia” (2021) e “Legados: Crônicas sobre a vida em qualquer tempo (2022).

*Maria Anita Brasileiro Falcão, Assistente Social das Prefeituras de Vitória e Serra/ES, com formação em saúde da população de rua.  Sambista. Catequista de Comunidade Eclesial de Base. Militante do Movimento Negro. Vice-presidente da Escola de Samba Unidos da Piedade. Bisavó

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2 respostas para “A força da comunidade”

  1. Avatar de Maria Celeste Lima de Barros Faria
    Maria Celeste Lima de Barros Faria

    Mais uma vez Beatriz Herkenhoff nos acorda para a importância da humanização, dando voz à Anita e, assim, dando voz à comunidade à qual ela representa! O mundo está em desajuste, precisamos colocar as questões que fazem avançar a solidariedade em pauta permanente!

  2. Avatar de MARIA BEATRIZ LIMA HERKENHOFF
    MARIA BEATRIZ LIMA HERKENHOFF

    Gratidão Celeste por seus ricos comentários. Dar voz para Anita me instiga e motiva. Amplio o meu olhar e me insiro numa realidade completamente diferente da minha. Experiência que possibilita aprendizados e desperta o desejo de me solidarizar, de caminhar com a comunidade de Anita, de festar e comemorar a vida em suas contradições. Percebo que nada sei, apesar de tanto estudo e conhecimentos acumulados. Anita me ensina que quando amamos, vamos ao encontro do outro, nos colocamos à serviço, e passamos a acreditar que um mundo melhor é possível.

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