Mudanças, perdas, aprendizados: a empreendedora Mirta Franz Lucchetta aposta na fé e na justiça para tirar sempre o que de melhor a vida pode oferecer

Por Mariana Guerin, jornalista e confeiteira em Londrina. Adoça a vida com quitutes e palavras

“Pô, Mirta, você tá em todas.” “Vem comigo que você aparece também.” “Ah, mas tem que trabalhar muito.” “Então, fofo….” Filha, irmã, esposa, mãe, tia, farmacêutica, motociclista, presidente do Contur, ministra da Eucaristia, artesã, sobrevivente. Essas são algumas das facetas da pedrinhense Mirta Franz Lucchetta, 55 anos, que hoje administra, ao lado da filha e da sobrinha, a farmácia fundada pelos pais, em 1961, numa colônia italiana no interior de São Paulo. Um balcão bem feminista e feminino.

“Eu era menina de brincar de boneca só quando chovia e não podia sair de casa, porque nos outros dias eu era moleque, de sair por essa Pedrinhas de bicicleta. Minha mãe tinha vergonha de me por de vestido porque eu vivia com o joelho roxo, com curativo. Mal sarava um já tinha outro. Eu tive uma infância muito legal.”

Foi da infância livre que compartilhou com a irmã e o irmão mais velhos que Mirta guardou um importante aprendizado para a vida: ser valente. “Os desafios de ser criança, de catar a bicicleta e fazer dez quilômetros no meio da terra junto com os moleques. A gente ia bater peneira no meio do rio com cobra e outros bichos. Não tinha medo. Acho que essa força, essa coisa de ser valente e encarar as coisas, eu trago da infância. Precisei muito dessa força para dar conta dos desafios que eu tive até hoje. Comigo é ou faz ou faz.”

A valentia a levou para diversos lugares, muitos deles sobre duas rodas, outra paixão que ela divide com os pais, irmãos e o marido. Casada com um administrador que sempre trabalhou em banco, ela se viu tendo que mudar de cidade sempre que ele era requisitado numa nova filial. Eles se conheceram em Pedrinhas Paulista, mas moraram em Tupã, Presidente Prudente, Ribeirão Preto e Campinas até retornarem à cidade natal, em 2008.

“Na minha adolescência, eu tive um namorado cabra macho sim senhor, machista ao extremo, que me mandou optar: ou ele ou a faculdade. Na época, não tinha curso de Farmácia noturno e eu teria que mudar de cidade para estudar. Então fiquei em Pedrinhas, fui fazer Magistério e fui trabalhando. A hora que o namorado deu o pé na bunda falei para o meu pai que queria ir para a faculdade, mas ele disse ‘se vira, te dei todas as oportunidades’, então comecei a trabalhar na farmácia, aos 21 anos”, relembra. 

Pioneira na cidade, a Drogaria Franz foi fundada na esquina da rua Pietro Maschietto com a avenida Itália, quase em frente à igreja matriz, e Mirta faz parte da sociedade familiar desde 1986, quando iniciou os trabalhos atrás do balcão para onde quase todo mundo da cidade corria em busca de atendimento e remédio quando ficava doente. “Quando eu comecei a trabalhar na farmácia meu pai fez uma coisa muito diferente do que normalmente um italiano faz, ele me deu 10% da sociedade”, recorda.

Depois de namorar por seis anos o atual marido, aos 24 anos ela se casou e a saga das mudanças teve início. E veio a única filha. “Tupã, Prudente, Ribeirão, Campinas: eu me adapto. Para que eu vou sofrer? Eu tiro o que tem de melhor da situação.”

Foi quando morava em Presidente Prudente que ela sofreu um golpe triste do destino. Depois de uma crise de asma que a fez correr ao hospital de madrugada, deixando a filha de sete anos com a vizinha, Mirta precisou passar por diversos exames sozinha, já que o marido viajava constantemente a trabalho. Vinte dias depois da primeira tomografia, o resultado apontou um tumor no pulmão.

“Nunca tive medo de morrer. Pus nas mãos de Deus”, confessa. Para ela, a doença foi resultado de um período de muito ressentimento após a morte do pai. “Avisei meu marido, minha mãe e procurei o pneumologista. Comemorei o aniversário da minha filha e 11 dias depois fiz a cirurgia. Perdi metade do pulmão esquerdo e tive fraturas nas costelas e no esterno, que me debilitaram por seis meses. Fiquei sem poder tossir e espirrar. Meu marido ficou comigo na primeira semana e depois contratei uma empregada para me ajudar porque ele tinha que viajar.”

“Antes do câncer, eu tinha outros pesos e outras medidas. Eu me apegava a ter coisas. Eu resolvia os problemas de todos. Hoje, os bens materiais para mim perderam o peso. Foi ai que eu decidi fazer faculdade. Tocar minha vida. Mudei completamente”, confessa a farmacêutica, que realiza exames preventivos anualmente e continua saudável após 17 anos da descoberta da doença.

“Comecei a faculdade em Prudente, em período integral. Eu era a única aluna do curso que podia usar celular na aula por conta da minha filha pequena, que estava na escola.” Após mais uma transferência do marido, ela retomou o curso deFarmácia, dessa vez em Campinas, onde rodava a cidade toda num fusquinha.

Após a morte do pai e a vitória contra o tumor maligno, Mirta se viu diante da possilidade de voltar para casa. “Meu marido estava na iminência de se aposentar, minha mãe ficaria sozinha na farmácia,pois minha sobrinha ia se casar, minha filha tinha perdido a bolsa de estudos para o ensino médio. Sentamos os três e decidimos que a melhor escolha seria voltar para Pedrinhas. Em 2008 voltamos e terminei a faculdade em Assis. Também sou pós-graduada em Atenção Farmacêutica e Farmácia Clínica.”

Dos tempos do boticário, quando o pai dela era o prático que manipulava os medicamentos para os moradores da cidade ela guarda apenas o balcão de mármore sobre o qual o pai costumava trabalhar. Fica na área gourmet da casa onde ela cresceu e hoje vive com o marido, a filha e a mãe. Casa que tem um lindo jardim com árvores frutíferas, orquidário e uma parede de flores coloridas que Mirta cuida com carinho e respeito. “Eu peço licença para recolher um ramo de alecrim. Eu agradeço as frutas. A minha retribuição é dar água, adubar, conversar”, ensina a jardineira.

“De farmácia, passamos a drogaria. Hoje só vendo medicamento pronto. Na época dos meus pais, as pessoas traziam o problema para o meu pai resolver. Hoje, as pessoas vão ao médico e vêm comprar o remédio prescrito comigo. Eu presto assistência farmacêutica”, define a empreendedora, que depois de 12 anos à frente do negócio familiar está se afastando aos poucos para que a nova geração assuma.

Com ela, dividem o balcão do nonno a sobrinha Cristiane Franz Gonçalves, que também é farmacêutica, e a filha Nicla Renata Lucchetta, que depois de se formar em Farmácia pela UEL (Universidade Estadual de Londrina) e terminar dois anos de residência num programa da universidade paranaense decidiu iniciar a vida profissional na pequena cidade do interior paulista. A nonna Ludovica Franz também costuma aparecer para atender os clientes vez ou outra.

“Desde pequenas trazíamos elas para a farmácia para mostrar a importância do negócio familiar. Eu também tive minhas incertezas em voltar, mas a gente anda para frente. Desde que assumi, tripliquei o patrimônio da farmácia. É nosso legado”, opina Mirta.

“Eu gosto muito de observar as pessoas. É uma diversão. Eu fico imaginando o que a pessoa está pensando. É uma característica minha. Como diz minha filha, tenho um lado bruxa. Sofri muito quando comecei a trabalhar na farmácia porque eu sentia tudo o que a pessoa estava sentindo. Eu absorvia os problemas. Agora não. Tem muita coisa que me faz chorar muito porque não posso resolver. Mas é reconfortante pode ouvir. Eu reclamava demais, mas depois que comecei a ouvir, parei. Pensamentos negativos levam a atos negativos e hoje tudo o que eu desejo é paz”, resume.

E essa tão desejada tranquilidade vem do artesanato, da culinária, da jardinagem, da religião, da leitura e, principalmente, da sua BMW F800. “Quando preciso pensar, troco de roupa, cato o capacete, monto na moto e saio.”

“A moto é paz”, define a empreendedora, que também é presidente do Contur (Conselho Municipal de Turismo) e está à frente de um dos principais eventos turísticos da cidade: o Motofest. O encontro promovido pelo motoclube pedrinhense Stone Motors começou desprentensioso, como uma atração da festa de aniversário do município, em 2012, quando atraiu 250 motos. 

“Sem divulgação, só no boca a boca. Distribuímos uns poucos cartazes na região e deu 250 motos. Foi o must. Sem falar que em setembro chove. E foi um dia só. O pessoal viu o bosque e perguntou por que a gente não fazia um encontro de dois dias com camping. Deixamos para o próximo, que deu 1,2 mil motos no ano seguinte. Sem infraestrutura nenhuma”, recorda.

“Tem que contratar banheiro, chuveiro. Então, no segundo evento, cada um sacou do bolso e pagou a conta. No terceiro em diante mudamos a data. Deu uma tempestade, voou tenda. E vimos que em setembro não dava mais para fazer. Então, com a ajuda da cooperativa agropecuária fiz uma planilha de índices pluviométricos dos últimos dez anos e vi que os dias em que não chove na cidade estão sempre no último fim de semana de julho. Ainda faz calor e um céu de brigadeiro que todo motociclista ama. Mais a comida italiana. Fechou.” 

Já foram oito encontros desde então e o objetivo nunca foi ganhar dinheiro. A preocupação é oferecer música de qualidade e conforto aos visitantes. No fim de semana do Motofest, a população da cidade quase dobra. A avenida principal, o bosque em frente à igreja matriz e os arredores ficam lotados de barracas e motos de todos os tipos. Um palco é montado em frente à praça de alimentação, onde as nonnas italianas preparam massas frescas para os convidados.

Cada expositor paga uma taxa e com o dinheiro arrecadado da venda de souvenires e a ajuda da prefeitura, que fornece a infraestrutura de mesas, cadeiras, banheiros químicos e a limpeza constante, o motoclube consegue realizar a festa anualmente. “Somos todos loucos”, brinca Mirta, orgulhosa. “ Aquio povo fica. É o único evento que se tem notícia que o pessal vai embora depois do almoço de domingo. Em todo o Brasil, é levantar cedo, tomar café e estrada.”

Mirta com a família no Motofest. Foto: Arquivo Pessoal

A viagem mais longa e difícil que ela fez de moto foi pela Serra do Rio do Rastro, em Santa Catarina: 900 quilômetros. Um sonho, Minas Gerais. “Já fomos para Capitólio e foi maravilhoso mas quero ir de novo.” Um plano: Espírito Santo. Férias de 15 dias que aconteceriam em junho mas foram adiadas por conta da pandemia. “A Serra do Rio do Rastro foi impactante. Pegamos 6 graus em novembro e na volta 470 quilômetros debaixo de chuva. Eu via manchas de óleo na pista. Eu estava na frente do pelotão e pelo intercomunicador avisei meu marido e ele avisou todo mundo para ir atrás de mim. Fizemos em dez horas uma viagem de cinco horas, com congestionamentos monstros.”

Mirta já alcançou 200 km/h na estrada e adorava a sensação de andar sem capacete na sua Cinquentinha quando ainda era permitido. A Cinquentinha, inclusive, foi a primeira moto da família, comprada com o saldo da poupança dos três irmãos quando ela tinha só oito anos.

Para quem se machucou feio em alguns tombos e já caiu três vezes da moto parada, ela até pode trocar de motocicleta, mas deixar de pilotar, nunca. “Meu sonho de consumo é quase impossível pois envolve um modelo em que meus pés não alcançam o chão.É um problema de comprimento de perna”, brinca.

“Eu faço coisas de elétrica e hidráulica que meu pai me ensinou. Eu era o ajudante do meu pai. Ele nos ensinou a independência. Teve um aniversário da minha filha que eu dei para ela uma baita caixa de ferramentas. Eu tenho a minha e meu marido tem a dele”, conta.

Outro ensinamento de pai para filha e para neta é o senso de justiça. “Meu pai sempre ensinou a ser justo, a não maltratar nem tirar vantagem de ninguém. A respeitar gêneros. Ensinei minha filha desde pequenininha: se você tiver alguma dúvida, leia, pesquise.”

Católica praticante, Mirta é ministra da Eucaristia na Paróquia de São Donato e tem na fé seu combustível para seguir confiante. “Quero sossego aos 55 anos. Não ter problema financeiro. Não ter que me preocupar com o que eu vou ser daqui para frente. Sabe aquele papo de aposentado? Casa certinho”, avalia a farmacêutica-motociclista-empreendedora, que quando não está atrás do balcão ou ajudando na missa, está em seu traje preto de couro, exibindo orgulhosa seu colete cheio de adereços dos encontros de motos que visita com o marido Brasil afora.

Meu lema é ser justa. Prefiro estar sempre consciente dos meus atos, nunca perder o controle. Se pudesse dar um conselho para minha filha é que ela seja ponderada em suas decisões. Que tenha várias estratégias em mente para o caso de algo dar errado na vida. Mas que sempre siga o que diz seu coração.”

Uma resposta para “‘Eu quero é sossego’”

  1. Avatar de Ludovica Ceccarel Franz
    Ludovica Ceccarel Franz

    Muito bem escrito e verdadeiro

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