Fotos: Carlos Monteiro
Assim que minha filha Beatriz foi diagnosticada com a Síndrome de Rubistein-Taybi, as pessoas se sentiam na obrigação de me fazer elogios.
Era uma forma de colorir o que hoje chamamos de capacitismo e que em 1987 era preconceito estrutural mesmo. Eu passei a ser chamada de “mãe especial”, “escolhida por Deus”.
Beatriz não era uma criança e sim um anjo.
No início eu até me senti uma mensageira de Deus, mas antes que o ego me engolisse, voltei ao mundo real e, observadora que sou, percebi que os anjos pintados em tetos das igrejas barrocas eram loiros, bochechas rosadas, olhos azuis e cabelos encaracolados.
Nunca vi um anjinho em cadeira de rodas, com alguma deficiência e muito menos preto.
Então, por que minha filha foi logo denominada de anjo, já que não se enquadrava nas características angelicais? E por que eu era uma mãe especial?
É preciso ter alguma capacidade a mais para se tornar mãe de uma pessoa com deficiência? Como Deus escolhe estas mães? Ele tem escala comportamental das mães?
Então eu conclui que Deus não escolhe ninguém. A nossa sociedade sim. Não como mérito e sim como uma forma de silêncio.
Para as religiões, é muito confortável e consoladora a ideia de que somos especiais.
Assim não nos revoltamos com Deus, não abandonamos a igreja. A ideia de que Deus dá e Deus tira é definitiva e não aceita questionamento em seu dogma.
Para as políticas públicas, o governo, as escolas e o patriarcado se torna extremamente confortável porque uma mãe enviada por Deus aceita passivamente o sistema de saúde frágil e incompetente, uma administração que não se preocupa com acessibilidade, com cuidados básicos de alimentação e escolas que segregam ao invés de serem inclusivas como lhe cabem.



É também normalizado, por esta sociedade, o índice de 93% dos pais que “não dão conta” e abandonam o que chamam de lar.
À mulher especial não se permite o choro e o lamento. Ela tem que cumprir seu papel de forte, de “mulher guerreira”. A sociedade dorme sossegada enquanto ela vela o sono de seu anjo. E anjo dorme?
Estas minhas conclusões foram duras e amargas, porém necessárias. Precisamos abraçar nossas fragilidades e nossa solidão para que possamos abraçar nossos filhos e filhas, como gente e não como seres etéreos.
E quer fazer uma mãe atípica se sentir especial? Dê a ela um abraço e um café com bolo Maria-Maria.
A solidão da mãe atípica é real.
N.R. O projeto “Linguagem Inclusiva”, sobre palavras e expressões preconceituosas da língua portuguesa, fez uma votação online para nomear o novo nome do bolo ‘Nega-Maluca’, por sua origem racista. O nome escolhido foi “Maria-Maria”. Deixo aqui minha sugestão de que o novo nome do bolo também passe a ocupar a mesa de vocês.
*Odette Castro é artista, escritora, ativista social. Através da sua experiência com a dor e o luto, mostra que é possível seguir em frente e ser feliz. Já foi servidora pública e também empresária. Hoje é cronista do cotidiano, criadora dos projetos “Uma flor por uma dor” e “Fale certo”, autora de “Rubi”, ativista de inclusão social, mãe e avó.
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