Beatriz tinha um distúrbio do sistema nervoso chamado “Síndrome do Arlequim”. A principal característica da síndrome era um aparecimento brusco de uma vermelhidão em um só lado do rosto, enquanto o outro ficava extremamente branco. A seguir ela tinha uma ausência, numa espécie de desmaio.

O neurologista prescreveu anticonvulsivo, o estigmatizado Gardenal.

Todos os dias, sempre às 18h, hora da melancolia, como dizia minha mãe, o remédio, em forma líquida, na cor de um suave cor-de-rosa era administrado na Beatriz, por meio de uma colher de plástico ou de silicone. Nunca de metal.

Laura, minha filha mais velha, então com 6 anos, sempre assistia a este ritual. Entendia sua curiosidade, mas era sempre alertada para os perigos de tomar remédios da irmã, que ficavam em lugar bem alto no armário.

Uma noite, estava sozinha em casa com as duas crianças, quando Laura com olhar ressabiado, me pergunta:

— Mãe! Se eu tomar o remédio da ‘Bê’ (era assim que chamava a irmã), o que me acontece?

Secamente lhe disse: “Você morre”!

— É porque tomei um pouquinho! Só para sentir o gosto.

Trêmula e em pânico corri ao quarto onde uma cadeira, com um banquinho em cima, mostravam que o pouquinho era na verdade mais da metade do medicamento. O vidro estava vazio.

Deixei Beatriz com uma vizinha e corremos para o hospital aonde ela já chegou sem sentidos.

Procedimentos realizados, eu pergunto:

— Filha por quê?

Ainda sonolenta ela me diz:

— Mães gostam de filhas que precisam tomar muito remédio.

O que veio a seguir foi o silêncio, o nó na garganta, o choro abafado, a culpa, a sensação de incapacidade para lidar com a situação e a certeza de que o amor de mãe precisa ser jorrado em torneiras porque conta-gotas delicadas não fazem efeito.

É preciso levar o olhar para o filho que, talvez, passe a ideia que precise menos de nós.

*Odette Castro é artista, escritora, ativista social. Através da sua experiência com a dor e o luto, mostra que é possível seguir em frente e ser feliz. Já foi servidora pública e também empresária. Hoje é cronista do cotidiano, criadora dos projetos “Uma flor por uma dor” e “Fale certo”, autora de “Rubi”, ativista de inclusão social, mãe e avó.

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