Advogada especializada no tema explica a importância da denúncia para ajudar gestantes a superarem o trauma provocado por este tipo de violência
Mariana Guerin
Foto em destaque: Pexels
O Ministério Público do Paraná, por meio da 24ª Promotoria de Justiça, apresentou denúncia criminal por violência obstétrica contra um médico da rede municipal de Londrina. A vítima é uma adolescente de 16 anos que teria sido agredida durante trabalho de parto, ocorrido em setembro de 2019.
Na ação penal, o MPPR sustenta que, durante o parto da jovem, o servidor público realizou de forma desnecessária e sem o consentimento dela um procedimento de episiotomia (incisão na região do períneo, feita quando há necessidade de facilitar a passagem do bebê). Ele teria realizado o procedimento mesmo depois da negativa da adolescente e de ser questionado por uma enfermeira que acompanhava o parto.
Conforme a denúncia, “pouco antes de realizar a episiotomia, disse ‘quem manda aqui sou eu’, após a intervenção da enfermeira […] (que assistia o parto) acerca da desnecessidade do procedimento, e da súplica da parturiente de que não desejava o corte no períneo”.
A Promotoria de Justiça aponta, ainda, que o médico não aguardou a expulsão espontânea da placenta, o que levou a diversas complicações posteriores, e que, durante todo o parto, em diversas ocasiões, ele constrangeu e humilhou a adolescente.
Afirma o Ministério Público que o acusado, “no contexto de violência obstétrica, com vontade e consciência, causou danos emocionais à vítima […], prejudicando-a e perturbando-a em seu pleno desenvolvimento […], mediante constrangimento, humilhação, manipulação, ridicularização, causando prejuízo à sua saúde psicológica e autodeterminação, tudo prevalecendo-se da relação de poder entre médico e paciente.”
Violência obstétrica gera pedido de indenização
O MPPR também acusa o profissional de saúde de falsidade ideológica, por ter inserido nos documentos relacionados ao prontuário clínico da paciente informações falsas: relatou não ter feito a episiotomia e ter aguardado a dequitação da placenta, o que, conforme apurou o Ministério Público, não ocorreu.
Além da condenação pela violência obstétrica, a Promotoria de Justiça requer que o denunciado seja condenado a indenizar a jovem em R$ 50 mil por danos morais e materiais causados durante o parto. De modo a proteger a vítima, o processo tramita sob sigilo.
Advogada fala da importância de denunciar
A advogada Débora Nicodemo, especialista em Violência Obstétrica e Direito Médico, com formação complementar em Educação Perinatal e Doulagem, realiza nesta terça-feira (25), uma palestra sobre violência obstétrica.
O evento é organizado pelas comissões de Direito do Consumidor, Direito da Saúde e da Mulher Advogada, da OAB-Londrina e está marcado para às 19h30, na sede da Subseção (Rua Parigot de Souza, 311).
Segundo Débora, temos três vias de denúncia de casos de violência obstétrica: a primeira é administrativa. “A vítima vai denunciar o médico, o profissional de enfermagem ou outros profissionais que assistiram o parto. Neste caso, abre-se um processo disciplinar nos órgãos de classe e, geralmente, a vítima não é informada sobre o processo porque ele é tratado como uma questão interna.”
Depois, existe a possibilidade de denúncia criminal, quando a violência obstétrica acarreta algum crime, como a episiotomia de rotina. “É um procedimento muito comum nos hospitais brasileiros, escuto muitos relatos de mulheres que perceberam dias depois que estavam com um corte.”
“Como elas passaram pelo parto, muitas nem percebem que foram cortadas sem consentimento, o que caracteriza lesão corporal”, completa a advogada, reforçando que, muitas vezes há, ainda, omissão de socorro e negligência, que podem caracterizar um Boletim de Ocorrência criminal.
“Também tem a mulher que chega com um pedido cível, para que ela seja indenizada. Essa indenização por violência obstétrica evolve danos morais. Outras vezes tem a questão dos danos materiais, porque a mulher pode ter que fazer alguns tratamentos em decorrência dessa violência.”
“Às vezes é uma fisioterapia pélvica, um medicamento, laserterapia e até consequências nas relações sexuais e possíveis danos estéticos. Então, ela precisa ser indenizada materialmente”, diz a advogada.
Ela ressalta que a violência obstétrica pode vir acompanhada do erro médico, um procedimento realizado por negligência, imperícia, imprudência. “Às vezes, um médico que não era especialista realizou a cirurgia ou um técnico de enfermagem que não podia ter feito um procedimento foi lá e fez e causou um dano na mulher. Temos várias situações interligadas que podem levar a um pedido de indenização.”
Para ela, o caminho da indenização é interessante porque atinge o bolso dos violadores de direitos. “Vão começar a tomar o devido cuidado e talvez seja uma sanção interessante para que eles realmente aprendam que é errado realizar esses procedimentos.”
De acordo com Débora, o que se vê nos casos de violência obstétrica é uma série de procedimentos rotineiros realizados na mulher. “Aquela busca pela cesariana desnecessária, aquela ocitocina colocada sem consentimento da gestante, episiotomia, é não deixar que a mulher caminhe durante o parto vaginal, que é um direito dela, é não ter acesso aos alimentos”, cita.
“É xingá-la, porque, infelizmente, a gente escuta muitos relatos de mulheres que falam que foram xingadas pelos médicos, pelos enfermeiros, que mandavam ela calar a boca, que não a deixavam gritar, que faziam com que ela fizesse o puxo dirigido, obrigando ela a realmente fazer força no momento que não queria. Então, tudo isso também vai configurando a violência obstétrica.”
Na opinião da especialista, a desistência em denunciar está ligada à falta de preparo da população em falar sobre violência obstétrica, sendo que muitos profissionais, até mesmo da saúde, falam que este tipo de violência não existe.
“É muito importante que essas mulheres estejam assistidas por pessoas que entendem o que estão falando. O que fundamenta, hoje, a gente falar sobre violência obstétrica são as diretrizes do Ministério da Saúde, os protocolos da OMS (Organização Mundial da Saúde), é a nossa Constituição Federal, que fala sobre vida, sobre não termos tratamento desumano e degradante.”
“E quando a gente fala da violência obstétrica, o que nós vemos é uma verdadeira violação aos direitos humanos da mulher”, resume Débora.
Segundo ela, as chances de condenações dos autores são altíssimas, mas o profissional do Direito, muitas vezes, não tem um entendimento do assunto. “A violência obstétrica vai trazer termos médicos que no Direito nós não utilizamos no dia a dia. Então, o despreparo pode trazer condenações que não são favoráveis.”
“Por isso essa mulher precisa procurar pessoas que sejam especializadas para não acontecer de ter uma condenação para ela ao invés de ser para o hospital, para o médico.”
Débora lembra que o Direito conta com muitos fundamentos que conseguem comprovar que existe a violência obstétrica e que os procedimentos médicos foram realizados de forma rotineira. “Só que para isso há a necessidade de uma especialidade.”
Assistência psicológica ajuda a tratar os traumas
Para a advogada, é essencial que a mulher seja assistida por uma equipe psicológica por conta dos diversos traumas causados pela violência obstétrica. Os mais comuns são não querer mais ter filhos e sentir que os direitos ao planejamento familiar foram violados, além de não conseguir olhar para o recém-nascido ou ter dificuldade em amamentar.
“Muitas vezes, ela fala ‘até marquei a minha laqueadura’, ‘já marquei um outro contraceptivo, porque eu não posso, não quero ter mais isso, me causa muita dor’. Essa mulher vem muito fragilizada porque era para ser o momento mais lindo da vida dela e se torna um momento de terror.”
“Ela perde o direito sobre o próprio corpo, é muito triste. Então, a procura por um serviço psicológico público se torna extremamente necessária e é uma garantia do SUS”, diz Débora, destacando que o acesso à Justiça é uma garantia constitucional.
“Pessoas que não têm recursos financeiros conseguem ter um advogado de forma gratuita e serem assistidas de forma gratuita. A única problemática é que o advogado público pode não ter um conhecimento tão especializado no assunto para suprir as necessidades jurídicas dessa gestante”, alerta a especialista.
Segundo ela, o objetivo da palestra na OAB-Londrina é trazer informação de qualidade. “A gente fala que uma a cada quatro mulheres sofre violência obstétrica. Nós que trabalhamos na área sabemos que esse número é muito maior e não bate com a realidade.”
“Quando você conversa com a mulher e ela traz o relato do parto dela, você percebe vários pequenos atos que foram violência obstétrica. E, às vezes, numa conversa com dez mulheres, todas sofreram algum tipo de violência.”
Débora insiste que muitas mulheres que passaram por essa violência não souberam identificá-la. “Ela está arraigada na nossa sociedade, dentro dos hospitais, dentro da própria existência e do ensino da medicina e enfermagem e se proliferam como se fossem coisas normais.”
A palestra vai se voltar para advogados, mas, por ser aberta, também quer chegar à sociedade: mulheres, doulas, gestantes e mães. “É uma informação que a gente precisa disseminar e que infelizmente ainda não é tão disseminada.”
Atuando em Maringá, Débora promove por lá o “Papo de Gestante”, que busca trazer informação sobre a violência obstétrica principalmente para a gestante, mas também para o público em geral.
“Porque quando a gente fala da gestação, a gente também está falando da doula, do acompanhante, da rede de apoio dessa mulher. Todas essas pessoas precisam estar presentes e abrir essa consciência do que é a violência obstétrica.”
“Elas precisam estar conosco nessa luta pelo direito de parir direito, pelo direito de respeito ao corpo, pelo direito da mulher ser protagonista do seu parto. A gente vê o tempo todo que essas mulheres são apenas coadjuvantes e elas não podem ser isso. Elas são protagonistas das histórias delas, do parto delas”, conclui Débora.
(Com informações da assessoria de comunicação do MPPR)
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