Em evento, associação reuniu representantes do judiciário, imprensa, sociedade civil organizada, movimentos sociais e sobrevivente de feminicídio

Cecília França

Fotos: Convidados e convidadas para o bate-papo promovido por Néias/Fotos: Emerson Scada

Entre abril de 2021 e abril de 2023, foram agendados em Londrina 31 julgamentos de casos de feminicídio tentado ou consumado. Dois acabaram adiados. A maior parte das vítimas nesses casos tinha entre 18 e 44 anos e 20 delas (64,5%) tinham filhos. Onze eram negras, 9 brancas, 1 indígena e em 9 processos simplesmente não havia essa informação. As condenações dos réus aconteceram em 26 dos julgamentos. Em três deles houve absolvição ou desclassificação do crime para lesão corporal.

Estes foram alguns dos dados apresentados nesta quarta-feira (26) por Néias-Observatório de Feminicídios Londrina, durante evento que celebrou os dois anos da associação, no Sesc Cadeião.

O evento propôs um bate-papo sobre os impactos do trabalho do Observatório para a sociedade e contou com a participação de Maria Goreti da Silva, cuidadora, sobrevivente de tentativa de feminicídio, Sueli Galhardi, presidenta do Conselho Municipal dos Direitos da Mulher (CMDM), Peterson Dias, jornalista e editor dos programas Primeiro Impacto e Destaque da Rede Massa Londrina e Ronaldo Braga, promotor titular da 30a Promotoria de Londrina, que atende casos de violência doméstica.

Antes, a socióloga e porta-voz de Néias, Silvana Mariano, falou sobre a criação da do Observatório e a antropóloga Martha Ramirez-Galvez, presidenta de Néias, expôs os dados dos julgamentos acompanhados, tendo como base os processos e levantamento do Laboratório de Estudos de Feminicídios (Lesfem) da Universidade Estadual de Londrina (UEL).

Em 29 dos 31 casos acompanhados as vítimas era mulheres cis; em dois, mulheres trans. Em 24 deles havia vínculo íntimo entre agressor e vítima; em dois situações de prostituição; em outros dois vínculos familiares diversos (padrasto e genro) e em somente três o agressor era desconhecido das vítimas.

Martha destacou pontos que merecem maior atenção, como a ausência de perfil étnico racial das vítimas em um grande número de processos. “Cor não é um dado consistente nos processos. Muitas vezes ele nem sequer é mencionado”, apontou.

Martha destacou que 19 das agressões ocorreram em espaços considerados públicos e 12 em espaços privados, e sugere uma leitura diferenciada desta classificação.

“Aqui é importante dizer que espaço público pode ser na frente da casa da vítima. Ela é atacada na sua casa e sai pedindo socorro, por exemplo. Aí já caracteriza espaço público, mas a gente poderia rever isso como espaço doméstico”, pondera.

Em 19 casos os agressores utilizaram facas ou outros objetos perfurocortantes; em dois, armas de fogo e nos demais as lesões ou mortes foram provocadas por estrangulamento ou espancamento.

As dramáticas consequências do feminicídio

Ao apresentar os dados, Martha Ramirez lembrou de uma das consequências mais dramáticas do feminicídio: os órfãos. Em 20 dos 31 casos acompanhados por Néias as vítimas eram mães.

“A maior parte delas tem filhos menores de 18 anos, o que coloca uma situação que é muito complicada, porque o que vai acontecer com os órfãos do feminicídio, sendo que, muitas vezes, o pai será condenado? Então tem o pai na cadeia e a mãe no cemitério. É um problema seríssimo para o qual precisamos nos atentar”, alerta.

Desde 2015, o Código Penal Brasileiro classifica o feminicídio como uma das modalidades do homicídio e o define como aquele “cometido contra a mulher por razões do sexo feminino”. Isso ocorreu após a promulgação da Lei n˚ 13.104, de 09 de março de 2015, que incluiu o feminicídio como uma qualificadora do tipo genérico homicídio (Código Penal, art. 121, § 2º, VI e § 2ºA) e também especificou suas agravantes (Código Penal, art. 121, § 7º).

Na estrutura da legislação penal, é uma das formas graves de homicídio (homicídio qualificado), e por isso é um crime hediondo (Lei nº 8.072/1990, art. 1º, I), tornando o cumprimento da pena sempre em regime fechado e o condenado só poderá ter livramento condicional após cumprir 2/3 do total da pena.

Fonte: Néias-Observatório de Feminicídios

Sobrevivente relata experiência

A cuidadora Maria Goreti da Silva foi uma das convidadas do evento de celebração de dois anos de Néias. Em novembro de 2021 o Observatório acompanhou o julgamento de seu agressor, que resultou em uma condenação de 14 anos pela tentativa de feminicídio.

Em um depoimento emocionante, Goreti relatou os 25 anos de violência que enfrentou.

“Durante três anos eu apanhei todos os dias”, relembrou ela. Quando o então companheiro trouxe para casa um filho, ela o adotou e renovou as esperanças.

“Ele sempre me esperava no ponto de ônibus e lá ele já batia em mim, no ponto de ônibus mesmo. Quando meu menino chegou eu acho que foi uma bênção, eu não questionei dele ter trazido o menino”, relatou.

Quando o filho se tornou adolescente, Goreti decidiu por fim ao casamento e, então, aconteceu a tentativa de feminicídio, em março de 2020, que só não se consumou porque populares o impediram.

Goreti chegou a se mudar de Londrina em busca de segurança, retornando após a condenação do agressor. Ainda assim, diz que segue recebendo ameaças, mesmo com o homem preso.

“Mas eu não tenho medo. Eu confio em Deus”, declarou ela.

Leia também: Sobreviventes de feminicídio tentado falam sobre como romper ciclo de violência

Convidados e convidada ressaltam importância do Observatório

Em sua fala, Sueli Galhardi, presidenta do Conselho Municipal dos Direitos da Mulher, destacou a importância de Néias como uma fonte de dados confiável sobre a violência feminicida em Londrina e ressaltou a necessidade do controle social para a construção de política públicas.

“A gente sabe que a Lei Maria da Penha também foi impulsionada pelos movimentos sociais de mulheres”, relembra a ativista.

O jornalista Peterson Dias afirmou que o trabalho do Observatório leva editores e demais envolvidos na produção jornalística a repensarem seus posicionamentos.

“Não só a gente reinventar nosso conteúdo, mas o aprendizado diário”, apontou, relatando uma situação em que a assessora do Observatório, Carolina Avansini, o corrigiu sobre o uso do termo “crime passional” por um de seus repórteres.

“Ela me explicou que é um termo em desuso, que ameniza a culpa do agressor e eu disse ‘Não usaremos mais’”.

O promotor Ronaldo Braga, que atuou no caso de Cidnéia Mariano, dirigiu a palavra a sua irmã, Silvana, ressaltando a importância do envolvimento da família na cobrança do judiciário.

“Nem imagino o sofrimento que você e sua família passaram, mas sei que, ao menos na minha atuação, procurei dar o meu melhor e fizemos a justiça possível”, afirmou. Braga também conclamou a sociedade a participar, destacando que esta mobilização é um dos avanços trazidos por Néias.

Lentidão da justiça prejudica processos

Nos casos analisados por Néias fica evidente a maior celeridade da justiça para apreciar casos de feminicídio após a promulgação da lei que tipificou o crime, em 2015. Mas há casos ocorridos antes desta data que estão chegando só agora ao Tribunal do Júri.

No último julgamento acompanhado pela associação, neste mês de abril, transcorreram quase nove anos entre a data do crime contra Tânia Mara Silva Rocha e o júri de seu ex-marido e agressor, que acabou absolvido. Martha Ramirez comenta os prejuízos dessa lentidão para o processo.

“Neste caso, o que acontece quando se tem um julgamento de um ato que aconteceu há 10, 12 anos? As pessoas que testemunharam já não estão mais naqueles endereços, já esqueceram o que aconteceu naquele dia. O tempo faz com que o crime fique bastante descaracterizado”, argumenta.

Penas maiores em casos emblemáticos

Dentre os casos acompanhados por Néias em dois anos, o julgamento que resultou em maior pena foi o do caso da menina Sara. Sandro de Jesus Machado, padrasto da menina, foi condenado a 40 anos e 10 meses por estupro e feminicídio. A segunda maior pena, de 33 anos e 4 meses, foi dada a Alan Borges, feminicida de Sandra Mara Curti.

Outros dois em que as penas ultrapassaram os 20 anos foram os de Ingrid Fernanda Costa Ferreira, jovem de 17 anos assassinada a tiros pelo ex-namorado, Renan Júlio Bueno Fogagnollo, em uma ocupação de Londrina (pena de 28 anos), e de Cidneia Mariano, asfixiada pelo ex-companheiro Emerson Henrique de Souza (condenação a 23 anos).

O caso de Cidnéia, inicialmente uma tentativa, se tornou um feminicídio consumado e deu origem ao Observatório.

Silvana Mariano fala aos presentes

Irmã resgata história de Néia

A celebração dos dois anos de atividade do Observatório também foi momento de celebrar a memória de Cidnéia Aparecida Mariano, cuja trajetória foi relembrada por sua irmã, Silvana Mariano, porta-voz de Néias.

Silvana relembrou que feministas de Londrina, reunidas na Frente Feminista, se mobilizaram por justiça na ocaisão do julgamento de Emerson Henrique de Souza, agressor de Néia, em fevereiro de 2021. Com o mote “Feminicídio tentado é feminicídio”, as militantes conseguiram atrair a atenção da imprensa e da sociedade para o caso.

Clamando por voz para todas as vítimas, elas se viram inquietadas com o fato de outros julgamentos de feminicídios tentados estarem ocorrendo naquele mês mesmo período sem que nada se soubesse sobre eles.

“Nós estávamos ali, clamando por voz para todas as vítimas, e desconhecíamos aqueles outros casos”, relembra Silvana. Da inquietação das feministas nasceu o Observatório, tendo como um dos objetivos escrever o nome dessas mulheres na memória de Londrina.

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