Nossa vida é constituída de processos e transformações contínuas.

Em cada passagem vivemos as perdas e os ganhos nela contidos: infância, adolescência, juventude, vida adulta e envelhecimento.

Todos os dias deixo de ser quem sou. Na dinâmica do tempo perco vitalidade, energia, força e equilíbrio. Aprendo a perder com sabedoria.

Simultaneamente, percebo os ganhos que também são diários: novos conhecimentos, experiência, maturidade, sensibilidade e autonomia.

Não existe vida sem sofrimento. Somos seres finitos, precários, adoecemos, morremos, vivemos desconfortos físicos, emocionais, morais e intelectuais.

Quando não nego o sofrimento, digo um sim para as dores, mas também para as curas.

Tudo é transitório, tudo passa: amor e ódio, alegria e tristeza, juventude e velhice. Tudo passará!

Por que é tão desafiante desapegar-me das vivências da juventude, das imagens desejadas e do corpo idealizado?

Por que tenho bloqueios para acolher o envelhecimento e aceitar as mudanças com serenidade e gratidão?

Não posso ser inimiga de mim mesma, da minha idade, das belezas e agruras que metamorfoseiam meu ser.

O que me mantém presa, atada e paralisada? Por que não consigo cortar os laços e recomeçar?

Que medos conduzem o meu apego? Por que deixo de viver o hoje com receio do amanhã?

O desapego abre novos horizontes e possibilidades em nosso caminhar.

Como é complexo desapegar!

Desapegar-me:

dos bens materiais, das roupas, dos sapatos e bolsas, dos objetos que decoram minha casa;

dos livros e dos presentes que não uso mais;

dos amores que não estão mais aqui;

das lembranças que trouxeram alegria, plenitude e daquelas que machucaram, magoaram e desqualificaram;

de minhas convicções, crenças e valores;

do orgulho, da vaidade e do sentimento de superioridade;

dos preconceitos, da arrogância, da mesquinharia, do apego a leis que desprezam e julgam as pessoas;

do poder, do prestígio, do status e do reconhecimento.

Desapegar-me

do ciúme, do controle, da expectativa de que o outro vai preencher meus vazios;

da inveja, da vontade de querer o que o outro tem;

da necessidade de ser amada por todos, de ser o centro, de ser ouvida e elogiada;

da culpa, do risco de achar que o problema do outro é meu, do impulso de salvá-lo em sua dor;

da forma como concebi a maternidade, como depositei expectativas em relação ao meu filho;

enfim, da necessidade de ser lida como escritora, da expectativa em relação à venda dos livros e ao diálogo que o leitor faz com minhas crônicas.

Quando me desapego de algo, despeço-me de um passado que ainda me amarra e me impede de trilhar novos caminhos.

Somos assolados pela tristeza de ver partir quem amamos. Mas a minha vida não termina aí. Tenho que fazer a despedida e ressignificar a existência.

Quantos estão presos aos seus mortos! O desapego permite que aqueles que amamos partam.

Convivo todos os dias com a morte e busco os recursos para superá-la. A riqueza dessa experiência é que tem cantinhos escondidos em mim que só conheço quando vivo a dor.

As paredes de nossas casas estão impregnadas de energias positivas, como amor e alegria, mas também de energias negativas. É preciso esvaziar o que já não traz felicidade.

Desapegar-me significa liberar minha casa de energias que trazem doenças e me impedem de voar.

Como professora acumulava papéis, apostilas, livros, trabalhos de alunos e meus. Como sou muito organizada, criei o hábito de rasgar papéis uma vez por mês, jogava fora três sacos grandes de lixo. Se não fizesse isso, os armários não seriam suficientes.

Quando me aposentei, doei todos os meus livros para a biblioteca da Ufes e para o Sebo. As estantes ficaram vazias, pude enfeitá-las com fotografias.

Eu era tão minimalista que, durante mais de 25 anos, nem quadros na parede eu tinha. Mas, ao perceber que minha casa precisava de mais vida e cores, enfeitei-a com lindos quadros, inclusive aquarelas da minha irmã Heloisa e quadros do Convento da Penha e do Itabira bordados por minha tia Marília.

A renovação da casa é fonte de alegria e o desapego exerce um papel fundamental nesse processo.

Perdi muitas pessoas que amo e que fizeram parte da constituição do meu ser: meu pai, meus avós, tios, primos, amigos e três bebês. Precisei de ajuda terapêutica e espiritual para viver o luto daqueles que morreram.

Foi libertador descobrir que hoje estão em mim, em meus projetos e realizações, no legado que deixaram, a que dou continuidade.

Também perdi amores, tive que recomeçar, encontrar novos sentidos, reconstruir a minha vida afetiva.

Aprendi a não ficar presa ao amor que sinto pelo outro. Não depositar expectativas afetivas, pois ninguém é responsável pela minha felicidade.

Perder quem amo não alterou o que sou. O fato de ter perdido alguém que eu amava não me diminuiu.

O fato de alguém não me querer não afeta o meu valor. Quando o outro vai embora, aquilo que com ele vivi de bom fica para sempre, me pertence.

Se muitas vezes temos dificuldade de romper um relacionamento que nos faz mal é porque não queremos viver a dor da perda.

É mágica essa experiência do desapego, novas oportunidades surgem de forma surpreendente.

Quando me desapego, sou fiel a mim, cresço e me torno mais amorosa, humana, pacífica, solidária, serena, aberta para novas possibilidades, justa na construção de um mundo melhor.

Conversando com meu médico acupunturista Marco Vago, ele comparou o desapego ao funcionamento do coração. O coração recebe o sangue e impulsiona-o para frente, não se apropria do mesmo.  O exercício do desapego é semelhante, é preciso viver cada momento com intensidade e deixar ir quando o ciclo se completa. Tudo tem início, meio e fim.

Aqui fica uma pergunta ao leitor: ao ler esta crônica, que desapegos você deseja realizar?

*Beatriz Herkenhoff é assistente social. Professora aposentada do Departamento de Serviço Social da UFES. Com doutorado pela PUC-SP. Autora do livro: “Por um triz: Crônicas sobre a vida em tempos de pandemia” (2021) e “Legados: Crônicas sobre a vida em qualquer tempo (2022)

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5 respostas para “O desapego liberta o amor”

  1. Avatar de Jeane Andréia Ferraz Silva
    Jeane Andréia Ferraz Silva

    Muito bom seu texto Bia! Me tocou e me ajudou profunda. Gratidão a você! Beijo

    1. Avatar de Maria Anita Falcão de Oliveira
      Maria Anita Falcão de Oliveira

      Gratidão Bia!

      Essa crônica me trouxe preocupações com a minha dificuldade de despegar, ao mesma tempo, me faz refletir que é hora de iniciar esse exercício de abrir espaço para o novo.

  2. Avatar de Maria Celeste Lima de Barros Faria
    Maria Celeste Lima de Barros Faria

    À nossa querida Beatriz todos os parabéns por mais esse poema em prosa!! A estética do seu escrito traz como marca registrada o questionamento. As interrogações são generosas, explicitando a humildade em reconhecer em si um não-saber sobre tudo! As respostas virão na singularidade de cada leitor! Obrigada!!

  3. Avatar de MARIA BEATRIZ LIMA HERKENHOFF
    MARIA BEATRIZ LIMA HERKENHOFF

    Gratidão Jeane, Anita e Celeste. Sinto-me motivada a seguir em frente com humildade
    e simplicidade. Vamos construindo juntas este caminho para que sejamos mais livres E possamos contribuir com um mundo mais justo e humano

  4. Bia sempre nos brindando, com palavras de vida e reconstrução! O que seria de nós se o coração não exercitasse o desapego a cada batida?

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