Durante o “Agosto Lilás” Londrina julga cinco casos de feminicídio tentado; Observatório Néias lança luz para a existência dessas mulheres
Cecília França
Foto em destaque: Silvana Mariano durante evento da rede municipal de enfrentamento à violência de gênero, em junho de 2023/Sueli Galhardi
No mês de conscientização pelo fim da violência contra as mulheres, o Agosto Lilás, Londrina julga cinco casos de feminicídios tentados. A forma mais cruel da violência de gênero, ainda que em sua forma tentada, deixa sequelas físicas, emocionais e, muitas vezes, materiais que ainda são menosprezadas pela sociedade. Néias-Observatório de Feminicídios Londrina busca visibilizar estas mulheres e suas histórias (leia mais abaixo).
“A lei do feminicídio existe não porque a vida das mulheres tem mais valor; é justamente o contrário, é porque, em uma sociedade patriarcal, nossas vidas valem menos. Então, nessa sociedade a vítima sobrevivente tem ainda menos valor. Ela sequer é reconhecida como sobrevivente. Ela é muito mais invisibilizada e desacreditada”, declara a socióloga Silvana Mariano, integrante do Néias e coordenadora do Laboratório de Estudos do Feminicídio (LESFEM) da Universidade Estadual de Londrina (UEL).
Em novembro de 2022, a Lume ouviu duas sobreviventes de feminicídio sobre como romper ciclos de violência e sobre as sequelas das agressões que sofreram. Ouça aqui trechos das entrevistas.
Silvana destaca que a violência contra as mulheres tende a ser banalizada, naturalizada e até tolerada enquanto não se tem um corpo para contar. “Desse modo, historicamente não existe um lugar social para a vítima sobrevivente. A sociedade não a enxerga. Então, precisamos romper com esse silêncio que contribui para a perpetuação da violência contra a mulher e lançar luz para a existência dessas mulheres. Nomear esse crime como feminicídio, ainda que na forma tentada, contribui para criar uma consciência social sobre a gravidade da violência sofrida”, defende.
Comumente, defesas de réus em casos de feminicídios tentados buscam a desclassificação para crimes de lesão corporal, uma vez que não houve morte, o que acaba por diminuir a pena do agressor. Há, também, o efeito simbólico dessa desclassificação, já verificada por Néias em alguns julgamentos na Comarca de Londrina.
“Sempre que acontece uma desclassificação para lesão corporal, o que eu enxergo é a sociedade aprovando o menosprezo às mulheres”, diz Silvana.
Consequências diversas para as sobreviventes de feminicídios tentados
“Com a violência feminicida, as mulheres sofrem prejuízos físicos, mentais, laborais e econômicos, dentre outros. Por exemplo, as sobreviventes com danos em sua saúde, deveriam ter o direito à oportunidade de reabilitação”, destaca Silvana Mariano.
A socióloga e sua família vivenciaram o abandono social e estatal às vítimas com sua irmã, Cidnéia Mariano, a Néia, que dá nome ao Observatório. Por 2 anos e 2 meses Néia foi uma sobrevivente e nunca teve esse reconhecimento da parte do sistema público de saúde.
“Minha irmã, quando saiu pela porta daquele hospital, sem qualquer movimento, sem fala, sem deglutição e sem autonomia para respirar, tornou-se um problema única e exclusivamente de minha família. Um problema privado. Naquele momento não existia mais Estado. Contamos com muita solidariedade de pessoas que nem conhecíamos, mas esse tipo de solidariedade não é suficientemente sólida e consistente para o tamanho do problema. Cabe ao poder público formular ações adequadas, justas e consistentes, de resposta imediata e duradoura. Esse problema não é privado; ou não deveria ser”, diz.
Muitas sobreviventes param de trabalhar, por sequelas físicas ou psicológicas, arcando com as vulnerabilidades advindas da ausência ou diminuição brutal da renda. “Para elas, deveríamos dispor de um tipo especial de transferência de renda, com acesso imediato. Por exemplo, minha irmã tinha emprego formal, o que é a minoria entre as mulheres brasileiras. Foram sete meses até acessarmos o benefício previdenciário dela. Isso é injustificável”, quesito a Silvana.
De acordo com a socióloga, há exemplos de boas práticas em outros países onde existe licença remunerada do trabalho e benefício assistencial emergencial para aluguel. “Ainda existe o fato de que as mulheres vitimadas pelo feminicídio muito frequentemente têm crianças sob sua responsabilidade. Precisamos de uma rede de proteção que disponha de atendimento especial a essas crianças no acompanhamento educacional e na atenção à saúde”, complementa.
“Como a violência contra mulheres é um fenômeno multidimensional, restituir os direitos dessas mulheres requer uma governança intersetorial”, finaliza.
Néias acompanha julgamentos e promove ato em frente ao Fórum

No Agosto Lilás, o Tribunal do Júri de Londrina julga cinco casos de feminicídio tentado, um recorde de julgamentos concentrados em apenas um mês desde o início de 2023.
Três destes casos estão agendados para esta semana e serão acompanhados por Néias. Amanhã (15), quando vai a júri Vinicius Leonardo Cardoso, Néias expõe no local o painel “Espaço do Silêncio”, de Nina Caetano, um manifesto de alerta sobre os feminicídios no Brasil.
Cardoso é acusado pelo feminicídio tentado de sua companheira Simoni Aparecida Brandt Gross. Ele tentou matá-la na frente de uma das filhas do casal, que tinha 11 anos à época, após uma tentativa dela de deixá-lo. O crime ocorreu há mais de 5 anos e o julgamento já foi adiado três vezes.
No dia 16 será julgado Júlio César de Oliveira, acusado pelo feminicídio tentado de Aldineia Florentino, em 20 de fevereiro de 2022. Conforme os autos do processo, eles tiveram um relacionamento curto, pois Aldineia não tinha interesse em manter a convivência.
No dia 17, quinta-feira, vai a julgamento a tentativa de feminicídio de Camila Cardoso Matias, ocorrida na madrugada do dia 18 de janeiro de 2020 na zona rural de Tamarana. O ex-companheiro, Willian Gustavo do Nascimento, é acusado de ter agredido física e verbalmente a vítima e, na sequência, ter atirado três vezes contra ela, só não tendo consumado o crime porque a arma falhou. Camila passou um mês internada, passou por cirurgias e permanece com uma bala alojada no corpo. Willian responde em liberdade.
Além desses casos, o primeiro julgamento do mês de agosto, no dia 1, tramitou em segredo de Justiça e resultou na condenação de Rafael Lucas a 12 anos e 1 mês de reclusão, a serem cumpridos inicialmente em regime fechado. E no dia 22 de agosto, será julgado Osmair Martins Esteves, acusado pelo feminicídio tentado de Ediane Alves Barbosa.
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