Símbolo da luta contra trabalho infantil, estudante cearense diz em Londrina que estimativa é de universidade suíça
Nelson Bortolin
O Brasil é referência internacional na legislação que protege os mais novos. O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que completa 33 anos, serve de modelo para outros países. Mas as ruas e periferias brasileiras mostram um abismo entre a lei bem escrita e a realidade de jovens constantemente desrespeitados em seus direitos.
“A gente tem políticas públicas de proteção à infância que poderiam ser fortalecidas, mas falta vontade política. A gente tem os mecanismos jurídicos para fortalecer e para proteger essas crianças e adolescentes, mas o mundo político ainda não trata a criança com uma prioridade que deveria ser e que a própria Constituição manda”, afirma o estudante de direito cearense Felipe Caetano da Cunha, de 21 anos.
Cunha participou da abertura do X Seminário Estadual ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente: Esperançar é preciso, realizado nesta sexta-feira (1º) no Teatro Marista e na Universidade Estadual de Londrina (UEL).

O jovem milita nessa causa desde muito novo. Aos 8 anos, começou a trabalhar na praia junto com a mãe e o padrasto, mas ao se envolver com os Núcleos de Cidadania de Adolescentes (Nucas), do Ministério Público no Ceará, ele começou a entender que não deveria estar trabalhando.
Acabou transformando-se numa das principais vozes do movimento, tendo integrado o Conselho do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) e já discursado na própria Organização das Nações Unidas.
Veja alguns trechos da entrevista que ele deu para a Rede Lume:
Você tem viajado bastante. Como é que o Brasil está nessa questão de trabalho infantil comparado a outros países em desenvolvimento?
Olha, tanto pra América quanto para o resto do mundo, a nossa legislação de proteção da infância é um exemplo. A gente não pode negar que o Estatuto da Criança e do Adolescente representou um avanço no reconhecimento das crianças e adolescentes como sujeitos de direitos pra todo mundo, principalmente aqui na América Latina.
E fora há países como Cabo Verde, por exemplo, que já fizeram seu próprio Estatuto com base no que a gente tem aqui no Brasil.
Porém, garantir o que está disposto nesse Estatuto é o que a gente encontra um pouco de resistência. A gente tem um sistema de garantia de direitos que poderia ser bem mais fortalecido. A gente tem políticas públicas de proteção à infância que poderiam ser fortalecidas, mas falta vontade política.
A gente tem os mecanismos jurídicos, a gente tem um meio para fortalecer e para proteger essas crianças e adolescentes, mas o mundo político ainda não trata a criança com uma prioridade que deveria ser e que a própria Constituição manda.
Então, assim, normativamente nós somos um exemplo para o mundo, mas socialmente a gente ainda não consegue cumprir plenamente o que está disposto nesse estatuto.
Na sua palestra você falou no aumento do trabalho infantil no Brasil por conta da pandemia. Quais são os números?
Em 2019, a gente tinha uma estimativa de 1 ,9 milhão de crianças em trabalho infantil. Não temos dados oficiais. Mas uma universidade da Suíça estimou que esse número pode ter aumentado sete vezes com a pandemia.
A maior parte das crianças que trabalha está nos semáforos das grandes cidades, na lavoura ou em trabalho análogo à escravidão?
Olha, graças a Deus, o trabalho escravo de criança no nosso País é um número bem pequeno (não há estatística disponível). A gente teve 56 mil adultos resgatados nos últimos 25 anos. No mundo, estima-se que existem 10 milhões de crianças em trabalho escravo.
O que nós temos muito no Brasil é a informalidade, com as crianças vendendo coisas nos sinais, nas praças.
E, no meio rural, a gente tem muito trabalho infantil na agricultura, dependendo muito da região.
A diferença de realidade do trabalho infantil entre as regiões do País é muito grande?
Assim, no caso do Ceará, por exemplo, a gente tem uma participação maior de crianças na agricultura. Em São Paulo, a gente tem mais no meio urbano. Então, cada região, dependendo da sua realidade, tem. No Rio Grande do Sul, por exemplo, é muito comum criança trabalhar na plantação do tabaco, do fumo.
Você é uma pessoa que trabalhou desde muito cedo, aos 8 anos, não é? Mas estava na barraca da praia junto com sua mãe, seus parentes. Essa é uma forma de trabalho infantil diferente? Um jeito visto até de forma positiva pela sociedade?
Olha, socialmente é. As pessoas não costumam se inquietar com isso. Até naturalizam, porque pensam: ‘É melhor o menino estar ali do que matando ou roubando’. Mas mesmo estando trabalhando com minha família eu ficava vulnerável, tinha contato com gente bêbada, gente estranha. Imagina as crianças que trabalham sozinhas, passam o dia trabalhando longe dos seus pais.
Você teve que convencer sua família sobre isso, sobre o fato de que você não deveria estar trabalhando?
Sim. Porque era uma coisa que não passava na cabeça deles. Minha mãe começou a trabalhar muito cedo, os meus parentes começaram a trabalhar muito cedo e, para eles, o caminho natural era que eu também passasse pelo trabalho infantil muito cedo.
Como é que você acha que é possível resolver esse problema sem, por exemplo, o Estado oferecer ensino integral?
Acredito que diversos são os meios de resolver isso. A maioria das famílias que eu vejo ou o pai ou a mãe não trabalham. E o adolescente acaba avocando para si essa responsabilidade. Então, profissionalizar o pai, colocar o pai dentro do mercado de trabalho formal é um dos caminhos.
A partir dos 14 anos, o jovem já pode ser aprendiz. Então, abrir vagas de aprendizagem para esses adolescentes e para esses jovens é também um mecanismo de combate ao trabalho infantil.
Mas a educação em tempo integral, principalmente para as crianças, é, como eu posso dizer, uma estratégia necessária porque menor de 14 anos não pode e não deve trabalhar de forma alguma, nem como aprendiz.
Quando pai e mãe estão no trabalho e as crianças precisam ficar sozinhas em casa há muito trabalho à revelia dos pais?
Olha, é mais difícil, mais difícil. Em alguns casos a gente já vê que o menino vai escondido para algum canto. Só que eu te digo que isso é minoria. Geralmente os pais têm um consentimento e muitas vezes apoiam esse trabalho infantil. Muitas vezes é o dinheiro das crianças que entra para a família.
A sociedade como um todo está engajada na luta contra o trabalho infantil?
Olha, eu acredito que nós, enquanto sociedade, não só como poder público ou família, temos que nos ver como garantidores desses direitos dessas crianças e desses adolescentes. A gente precisa ver o nosso papel e não naturalizar tais violações e não achar comum que crianças e adolescentes estejam com seus direitos sendo violados aqui no nosso País.
Organizadores do seminário
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