Por Beatriz Herkenhoff*
A vida não é linear, passamos por altos e baixos, momentos alegres e tristes, por perdas e ganhos.
Vivemos desafios em todas as áreas: financeira, física, afetiva, sexual, emocional, espiritual, familiar e comunitária.
A luta pela sobrevivência depende de uma moradia para a família, acesso a uma alimentação saudável, às políticas de saúde, educação e segurança, a um emprego digno, entre outras necessidades.
Muitas vezes ficamos prostrados, desanimados, paralisados, ansiosos, deprimidos diante do sofrimento e da dor. Temos dificuldades em ver uma luz no fim do túnel.
Os canais de comunicação privilegiam notícias sobre violência e morte. Um olhar negativo sobre a nossa humanidade.
No entanto, existem iniciativas e ações que fazem a diferença e que ficam escondidas. Identificá-las renova a esperança e nos coloca em movimento.
A poesia, a música, o teatro, a fotografia e a dança têm resgatado vidas de crianças e jovens da periferia.
Entre os diferentes grupos que conheci, fiquei totalmente encantada e emocionada com a apresentação do Serenata D’Favela, no Sarau de lançamento do livro “VIPIA: Versos imprecisos para infantilizar adultos” de Diego, o Cavaleiro Andante.

O coral Serenata apresentou músicas que nos levaram a refletir sobre a vida. Jovens lindos e expressivos, com um brilho especial nos olhos. Vozes potentes e alegres. Chorei durante a apresentação e quando olhei ao meu redor, as lágrimas estavam rolando em muitos rostos.
A apresentação do Serenata D’Favela tocou nossa alma. Fiquei sensibilizada com o entusiasmo e a competência da maestrina Luciene Pratti Chagas. Admirável sua sintonia com os jovens e as crianças.
Imediatamente procurei Luciene para conhecer melhor a história do Serenata.
O coral Serenata é um Grupo Musical formado por 100 jovens do Morro do Quadro e demais favelas de Vitória, Espirito Santo. Seu repertório abrange músicas autorais, populares e internacionais. O coral é um espaço para a integração e o enriquecimento cultural e, ao mesmo tempo, é uma forma de dialogar com os locais aonde se apresenta.
De acordo com Luciene “O Serenata de Favela não foi idealizado. Eu passei em concurso público e vim trabalhar numa escola no Morro do Quadro em Vitória, ES. A turma era grande e os meninos ficavam cantando ‘Funk Proibidão’, com letras que faziam apologia ao tráfico. Eles não me deixavam dar aula e eu precisava criar um vínculo para desencadear o processo de ensino e aprendizado.”
Tive um insight: “Já que querem cantar, vou levar música de qualidade.”

“Quando levei para a sala de aula a música Pais e Filhos, do Legião Urbana, as crianças e os jovens se identificaram imediatamente com a letra que relatava os conflitos e a realidade vivida por eles. Surgiu então a proposta de formar o coral Serenata D’ Favela”.
Luciene continua seu relato: “A partir do Serenata fomos interagindo com a realidade da favela. Pautamos as dificuldades enfrentadas, como: insegurança alimentar, invisibilidade da favela para o poder público e privado, entre outras. Somos hoje 319 meninos, meninas e suas famílias. Se antes já era difícil cuidar de 30 jovens, imaginem hoje.”
Fica a pergunta: “O que fazer com essa meninada de todas as faixas etárias? Nós despertamos neles o querer, com isso, as suas demandas e de suas famílias cresceram. O Serenata deixa de ser uma proposta musical, para ter uma perspectiva de sobrevivência e resistência. Nesse contexto temos que mobilizar recursos públicos e privados.”
Cesar MC também se identifica com o coral Serenata D’Favela. Ele é um rapper capixaba do Morro do Quadro e um dos rappers em ascensão no cenário brasileiro. Afirma: “Amo o Coral Serenata, somos uma família, já fizemos inúmeras apresentações, juntos movemos sonhos.”
César MC complementa “Quando descobri que na comunidade do Morro do Quadro tem uma movimentação de 100 crianças que cantam e que estão amadurecendo numa sociedade com tantos desafios. Eles são a expressão do que a minha música ‘Canção Infantil’ quer dizer”.
“A música Canção Infantil é a imagem de tudo que vemos: mãe que cuida do seu filho, o menor que é sonhador, as alegrias de morar na comunidade, de contemplar nossa simplicidade e chorar nossos desafios: o amor, o afeto e a fúria da comunidade, a doçura e agressividade desse local. Essa música mostra como a gente cresce numa comunidade tão desafiadora. Quando encontrei o coral Serenata, eu disse: eles são o retrato da letra dessa música. Eles são a matéria do que escrevi.”
Um pequeno trecho da música de César MC “Canção Infantil” para ilustrar a afirmação acima:
“Era uma casa não muito engraçada
Por falta de afeto não tinha nada
Até tinha teto, piscina, arquiteto
Só não deu pra comprar aquilo que faltava
Bem estruturada, às vezes lotada
Mas memo lotada uma solidão
Dizia o poeta, o que é feito de ego
Na rua dos tolos gera frustração
Yeah, yeah, yeah
Hmm, hmm, hmm
Yeah, havia outra casa, canto da quebrada
Sem rua asfaltada, fora do padrão
Eternit furada, pequena, apertada
Mas se for colar tem água pro feijão
Se o mengão jogar, pode até parcelar
Vai ter carne, cerveja, refri e carvão
As moeda contada, a luz sempre cortada
Mas fé não faltava, tinham gratidão
Yeah, yeah, yeah
Mas era tão perto do céu
Yeah, yeah, yeah
Mas era tão perto do céu
Como era doce o sonho ali (como era doce o sonho ali)
Mesmo não tendo a melhor condição (mesmo não tendo a melhor condição)
Todos podiam dormir ali (todos podiam dormir ali)
Mesmo só tendo um velho colchão (mesmo só tendo um velho colchão)
Mas era feita com muito amor
Mas era feita com muito amor.”
César MC conclui afirmando que “Os componentes do Serenata manifestam com sua arte o amor ao próximo. Eles fazem a diferença na comunidade e em mim também. Eles me ajudam a crescer e ser alguém melhor.”
Luciene completa: “Eu amo o projeto Serenata e estamos aqui por resistência, por dias melhores, por vida e esperança. A favela afirma a perseverança, o trabalho, o amor ao próximo, as lutas contra o tráfico de drogas, contra a falta de oportunidades.”
Algumas jovens que participam do Serenata também falam de sua experiência: “O Serenata transforma vidas: eu era muito tímida, não falava com ninguém, ficava no meu canto na sala. Com o coral fui aprendendo a fazer amigos, desenvolvendo a voz, soltando-me mais.”
“Sozinhas elas ficam tímidas para cantar, mas, em grupo soltam a voz.”
O projeto Serenata d’ Favela virou Instituto e passou a oferecer oportunidades na música, na arte e na capacitação profissional de seus integrantes.
O núcleo composto pela Orquestra d’Favela, é coordenado pelo maestro venezuelano Jesús Gavidia. O mesmo realiza aulas teóricas e práticas individuais e em grupo. Em meio aos becos e vielas na favela, a música e a sinfonia de violinos dão novo significado à rotina da comunidade.
O Núcleo de Dança, coordenado por Yago Barcelos, expressa a diversidade cultural da favela com diferentes estilos de dança: o balé, o samba, o breakdance, o passinho, afro, etc.
O Núcleo de Fotografia é ministrado pela fotógrafa documental Ana Luzes. Conta com a participação de 15 jovens e crianças utilizando a fotografia como forma de linguagem.
Vamos sair do lugar da lamentação e conhecer experiências que nos fazem acreditar na humanidade? Como estas lindas história de conquistas e superações tocam você?
Para conhecer mais sobre o Instituto Serenata D’Favela acessem no Instagram: @institutoserenatadfavela
*Beatriz Herkenhoff é assistente social. Professora aposentada do Departamento de Serviço Social da UFES. Com doutorado pela PUC-SP. Autora do livro: “Por um triz: Crônicas sobre a vida em tempos de pandemia” (2021) e “Legados: Crônicas sobre a vida em qualquer tempo (2022)
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