Perda brutal da mãe, maternidade solo e superação da dependência química marcam trajetória da londrinense

Cecília França

Foto em destaque: Márcia segura brinquedo do neto mais novo, presença diária na sua casa/Filipe Barbosa

No Dia das Mães de 1996, Márcia Vitoriano segurou nos braços seu primeiro filho, Paulo Henrique, hoje com 27 anos. Três anos depois veio Alisson, hoje com 24. “Eu quis ser mãe”, afirma ela. Aos 43 anos, Márcia revive a maternidade cuidando dos netos. São quatro, sendo que três passam muito tempo na casa da avó.

A presença das crianças está por toda parte, nos brinquedos espalhados pela casa, nos calçados infantis guardados no rack da sala, nas pequenas roupas penduradas no varal.

“Aqui eles têm o quarto da bagunça deles, mas nunca ficam só lá, é brinquedo, chinelo, pra tudo quanto é lado. Eles dão trabalho, mas é uma satisfação muito grande. Eu faço bolo pra eles, estouro pipoca, faço chá. Tudo que meus filhos faziam eles fazem aqui”, conta, sem esconder a alegria que sente por poder participar da vida dos netos.

Márcia precisou superar muita coisa para hoje estar saudável e presente. A vontade de ser mãe parece estar ligada à lembrança afetiva que ela tem da própria mãe, vítima de feminicídio aos 35 anos, em 1991.

“Vi minha mãe dando o último suspiro”, lembra ela. O crime foi cometido por seu pai na frente dela e dos outros cinco irmãos. Márcia era, então, uma criança de 12 anos, a mais nova dos irmãos. A violência do pai marcou sua infância e sua vida. Muito cedo ela se entendeu homossexual. Também entendeu que queria ser mãe e foi, muito cedo, aos 16 anos.

“Relacionamento com homem para viver junto eu nunca tive. Tive meus filhos, não me arrependo, mas se eu tivesse condição eu também não teria ficado com um homem para ter filho, tinha feito de outro jeito”, explica.

Márcia nunca teve emprego com registro e, para sustentar a família como mãe solo, trabalhou com reciclagem, cuidando de crianças e como diarista. Teve ajuda da irmã mais velha, que acabou assumindo o papel de mãe dos irmãos. Mas foi avisada por essa mesma irmã que, em algum momento, os filhos questionariam sobre os pais.

“Eu achava que eu tinha feito o filho só pra mim, sabe. Achava que não ia ter esse negócio. Mas a gente esquece que eles crescem. Minha irmã falava que uma hora eles iam querer conhecer (os pais), eu dizia que não, mas essa hora chega. Um foi com 13 anos e o outro com 10”.

Estudo da economista Janaína Feijó, pesquisadora do FGV Ibre (Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas), divulgado no dia 12 de maio, mostra que em 10 anos (entre 2012 e 2022) o número de mães solo cresceu 17,8% no Brasil, passando de 9,6 milhões para 11,3 milhões. Das mulheres que se tornaram mães solo nesse período, 90% são negras.

Márcia não se arrepende de ter tido os filhos sozinha e se orgulha do que construiu na vida. “Eu acho que Deus me abençoou. Meus filhos não me dão trabalho nenhum, eles não têm vício, eles nem gostam que eu fumo cigarro, não bebem, só trabalham os dois”, comenta.

Sobre a ausência de uma figura paterna, Márcia é taxativa: “Eu acho que não faz tanta falta assim”. Na relação com os filhos e netos, ela nunca escondeu sua homossexualidade.

“Meus filhos me conhecem, meus netos me conhecem, sabem quem eu sou, não precisa ficar inventando história e fingindo ser uma pessoa que você não é”, acredita.

Márcia mostra foto do filho mais novo quando bebê/Filipe Barbosa

Marcas profundas da infância

O pai de Márcia foi julgado pelo feminicídio da mãe, porém, acabou recebendo uma pena ínfima de quatro anos em regime aberto. Após isso, uma decisão judicial determinou o retorno de Márcia e dos irmãos à casa dele. Foram tempos difíceis.

“Não tinha como conviver com ele, ele não tinha mudado em nada, aí me mandou morar com tios meus lá em Paraná do Oeste. Eu fui, mas chegando lá meu tio era pior do que ele, tratava a esposa pior, batia de chicote, de bambu. Nisso a escola já era. Eu fugi de lá para cá, porque eu apanhava muito do meu tio. Fiquei quatro dias para chegar em Londrina a pé. Ainda levei uma surra (do meu pai) aquele dia porque eu tinha fugido”, relembra.

“Foi a vez que eu falei para ele ‘É a última vez que o senhor vai relar a mão em mim’. Porque ele não sabia bater, ele não sabia chegar, pegar o cinto, o chinelo. Era no soco mesmo, na bicuda. Meus irmãos estavam lá também e eu saí de casa mais cedo”.

No rack da sala Márcia mantém uma foto da mãe no porta-retrato. Até pouco tempo, guardava uma matéria de jornal sobre a noite do crime, mas acabou se desfazendo do recorte na tentativa de minimizar as lembranças ruins. As marcas da violência, porém, são difíceis de apagar.

“Ela morreu dia 4 de dezembro, 8h35 da noite, aqui em Londrina, no Parigot 2. Eu nunca vi ela escrevendo. O negócio dela foi trabalhar, cuidar da gente. Mas na perícia (após o crime) foi achado um caderno e era um diário dela, que ela escrevia tudo o que acontecia com ela”, conta.

“Ela tinha 13 anos quando casou com meu pai, foi o primeiro namorado. Nesse diário ela contava tantas coisas, tudo que ele fazia com ela, agressões, abusos…ele mantinha relação sexual sem ela querer”, relata.

Por mais que a mãe buscasse preservar os filhos, com carinho e cuidado, é evidente que o sofrimento dela, que culminou no assassinato, deixou marcas profundas.

Situação familiar impossibilitou os estudos

“Eu nunca trabalhei numa firma registrada por causa de falta de escola. Eu não concluí nem o meu terceiro ano”, conta Márcia. A situação familiar a fez mudar de escola com frequência e, após a morte da mãe e várias mudanças, não conseguiu seguir com os estudos.

O estudo da economista Janaína Feijó, da FGV Ibre, revela que mães solo têm renda 39% inferior quando comparada à renda de um pai casado. E a escolaridade dessas mulheres é altamente comprometida pela idade em que tiveram filhos.

“Os dados do 4º trimestre de 2022 mostram que mais da metade (54,3%) das mães solo tem, no máximo, ensino fundamental completo e menos de 14% tem ensino superior. A composição educacional entre as mães solo negras é ainda mais grave, com uma maior concentração nos extratos de nível educacional mais baixo (58,7%) e uma minoria tendo ensino superior (8,9%).”, mostra o estudo.

“Para entender a alta proporção de mães solo com baixo nível educacional é necessário analisar em que fase da vida elas se tornaram mães pela primeira vez. Como a maternidade requer uma dedicação quase que exclusiva das mães nos primeiros anos da infância da criança, se torna muito difícil conciliar com outras atividades e responsabilidades.”, analisa a economista.

“Quando a maternidade acontece durante a fase escolar (antes dos 24 anos) pode desencadear uma série de desdobramentos na vida profissional e pessoal da mulher, que, a longo prazo, pode ser irreversível. A perda de capital humano decorrente da interrupção dos estudos é uma delas.”

O estudo também revela que o rendimento das mães brancas/amarelas foi de R$ 2.772 em 2022, enquanto o das mães negras foi de R$ 1.685. Este índice pode

Márcia tem vontade de retomar os estudos, mas ainda não encontrou a motivação necessária. “Eu tenho vontade de voltar a estudar, mas não sei se eu tenho a capacidade. Quanto mais a gente fica mais velho, mais difícil é”, conclui.

Dependência química levou às ruas

Quando os filhos entraram na juventude Márcia conheceu as drogas. De lá para cá foram muitas recaídas, períodos em situação de rua, tentativas de internação. Hoje, “limpa”, como diz, ela consegue manter uma casa de aluguel na Zona Norte com auxílio governamental e ajuda do filho mais novo e da nora.

“A droga tira muita coisa de você. Eu demorei para conquistar tudo o que eu tenho de volta, minha família, os meus netos. Quando você está na rua, só com você, na droga, você não sente nada, não sente saudade, não sente solidão, não sente tristeza. A droga te anestesia. Quando você tá ‘de cara’, você tem que encarar a realidade”, explica.

Para montar a casa em que vive hoje, Márcia recebeu doações de móveis e outros itens. Ela segue sendo acompanhada por profissionais da psicologia e assistência social.

“Estou no meu melhor momento, feliz. Vou pedindo pra Deus não me deixar recair, porque se eu recair eu não volto. E já vou fazer 44 anos, já estou velha, o que eu já vivi você nem imagina”.

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