Ex-atleta olímpico Diogo Silva explica como o caso Marinho reflete uma realidade que só agora o país começa a enfrentar

Fábio Galão

Nas manifestações contra o racismo que se seguiram à morte do americano George Floyd pela polícia de Minneapolis, em maio, um dos setores em que houve mais repercussão foi o esporte. Na volta das principais competições esportivas durante a pandemia de covid-19, como os campeonatos europeus de futebol, a NBA e a Fórmula 1, a organização dos eventos e os atletas transmitiram mensagens e promoveram ações para pedir igualdade racial.

No Brasil, onde também ocorreram manifestações, um episódio na semana retrasada lembrou que o racismo no esporte permanece, apesar de tantos e tantos ídolos negros que o país revelou. Em um jogo do Campeonato Paulista em que o atacante Marinho foi expulso, o comentarista de uma rádio disse que o jogador do Santos estava “na senzala”. O atleta gravou uma resposta emocionada no dia seguinte e o comentarista, que acabou demitido, pediu desculpas e alegou que usou o termo senzala porque seria o nome de um grupo de WhatsApp paralelo para onde era mandado quem não cumpria as regras de um grupo principal.

Diogo Silva, um dos atletas mais bem sucedidos da história do taekwondo brasileiro (foi campeão sul-americano, pan-americano e dos Jogos Mundiais Universitários e Jogos Mundiais Militares e semifinalista olímpico duas vezes), alega que o caso Marinho espelha uma realidade histórica, do racismo no esporte brasileiro, que só agora começa a ser enfrentada. O paulista de 38 anos, que hoje trabalha como educador físico, em projetos sociais, além de ser empresário, palestrante, comentarista esportivo e integrante do grupo de rap Senzala Hi-Tech, contou à Lume como tem sido esse processo.

Como viu essa situação – no momento em que o esporte mundial se mobiliza pelo movimento Black Lives Matter, acontece no Brasil essa situação com o Marinho?

A diferença é que a revolução está sendo televisionada. As pessoas, com os celulares, estão mostrando aquilo que no nosso dia a dia é corriqueiro, é cotidiano, mas não saía nas grandes mídias, as pessoas não ficavam chocadas. A gente era só estatística, era só número. Com essa nova guinada que houve na luta antirracista, vinda desse movimento do George Floyd nos Estados Unidos, a diferença é que ela atingiu os patamares esportivos que antigamente não eram tão atingidos. As grandes estrelas passaram a se manifestar. Os pequenos atletas já se manifestavam, a questão era que nós éramos silenciados e punidos, então as nossas manifestações não duravam muito tempo e também não tinham um alcance midiático como o do Lewis Hamilton, do LeBron James, da Serena e da Venus Williams. Porque agora esses atletas colocaram (para os patrocinadores): “Eu sou mais forte que a sua marca. Se você não me defender, eu não quero fazer parte da sua marca”.

Mas a situação do racismo no futebol brasileiro é tão histórica quanto os mil gols do Pelé. Existe um site chamado Observatório do Racismo no Futebol que apontou que do ano passado para este o aumento de casos já foi de 27%. Então, o Marinho está dentro desse grupo, a diferença é que agora a gente não está colocando mais isso como números e estatísticas, a gente está falando quem são essas vítimas, onde moram, que seres humanos que são, como sofrem, ficam ofendidas…

Acha que esse movimento mundial de vários atletas de apoio ao Black Lives Matter pode ser o início de uma mudança duradoura contra o racismo no esporte ou teme que seja algo passageiro?

Eu sempre penso que o tempo cronológico deve ser comparado ao que veio antes. Então, antigamente, as manifestações não passavam de uma semana. Se a gente está conseguindo abordar o mesmo assunto, debater e permanecer reagindo há dois meses, o ano de 2020 já é o maior tempo em protestos pelas vidas negras de toda a história do Brasil. O Brasil sempre expôs a vítima, nunca o agressor, e agora nós estamos expondo os agressores. Eles estão sendo filmados, mostrados nos grandes e pequenos canais de mídia. A questão é que o sistema jurídico brasileiro não condena essas pessoas. O primeiro estágio é o reconhecimento: o Brasil não reconhecia que havia racismo, principalmente no esporte, e hoje já há esse reconhecimento. O segundo momento foi filmar, foi mostrar para as pessoas que isso acontecia. A gente precisa agora avançar para o terceiro momento, que é os juízes começarem a cumprir o seu dever, que é punir e restringir a liberdade de quem pratica o racismo. Porque todo ato é colocado como injúria, o agressor paga uma cesta básica para uma comunidade e está paga a pena. Então, o sistema jurídico brasileiro precisa ser firme. Hoje, as pessoas estão fazendo mais boletins de ocorrência, e quanto mais boletins de ocorrência forem feitos sobre o mesmo crime, mais estatísticas. Com essas estatísticas, a gente pode movimentar as leis, as regras e obrigar o poder judiciário, que é um dos poderes mais racistas que existem no Brasil, a cumprir a lei, porque hoje não está cumprindo.

Na sua carreira, quais foram as situações de racismo mais marcantes que você sofreu?

Muitas pessoas compreendem o racismo como uma violência direta, mas ele não é necessariamente uma agressão física ou verbal, porque o racismo se modernizou. Uma das grandes características do racismo no Brasil hoje são as estruturas de empregabilidade. Veja o futebol: o time mais antigo do país é a Ponte Preta, que tem 120 anos, e foi só no ano de 2020 que o clube foi ter o seu primeiro presidente negro, o único do Brasil (dos clubes das séries A, B e C do Campeonato Brasileiro). Então, o racismo que mais me atinge hoje é diferente do racismo que mais me atingiu na adolescência, que foi a violência policial e a forma como a sociedade nos colocava na grande mídia. Sempre nos colocava como pessoas incapazes, pessoas não inteligentes, pessoas que não obtêm sucesso. A nossa ausência na capa de revista é uma forma de racismo. Destruíram minha autoestima quando jovem, porque eu não me via, então eu não achava que era capaz. O racismo que eu vivo hoje é o das estruturas, do emprego, de não conseguir assumir cargos de gerência. E não é por falta de conhecimento, de formação, é pelo fato que esse modelo empregatício brasileiro não contrata. Além de não contratar, não indica. Dentro do mercado de trabalho, das multinacionais, das grandes empresas, de todas as grandes redes de televisão, de rádio, de mídia, a porcentagem da população negra nesses lugares é muito baixa ou quase inexistente.

Como enxerga o enfrentamento ao racismo no momento político polarizado que vivemos?

Na questão político-partidária, eu vejo que o problema da corrupção é atrelado ao racismo e à economia, não tem como esses mundos viverem separados. E ela (corrupção) é ambidestra, está na esquerda, está na direita, está no centro, não existe um lado onde ela não esteja. A primeira grande mentira que foi colocada para nós é que existe só um grupo que faz isso. Agora o brasileiro descobriu que todos os grupos fazem. Dentro das estruturas dessa política brasileira, o que nós vivemos hoje é o fascismo, esse governo extremamente autoritário que impõe aquilo que ele deseja e vai aumentando as mazelas do nosso país. Na verdade, é um sistema político que esteve aqui sempre e que em alguns momentos está mais fraco, em outros está mais forte, como agora. Essa geração de hoje está observando que a nossa democracia é frágil, tentando uma estabilidade apenas 30, 35 anos pós-ditadura, e que nós temos constantes tentativas de derrubá-la. Quando isso acontece, o primeiro grupo a ser atingido é o grupo pobre, periférico, preto e indígena. A primeira coisa que esse governo fez foi diminuir os acessos, diminuir os direitos. Quando uma população, a periférica principalmente, começa a ter ascensão, a alcançar espaços que não alcançava, como a universidade, a debater esses espaços, por que esses espaços não são ocupados por eles, para o fascismo ela se torna uma ameaça. A maior articulação é por essa derrubada. É enfraquecer a Funai para que os indígenas se enfraqueçam e seus territórios sejam tomados, assim como os territórios quilombolas. É colocar o (Sérgio) Camargo na presidência da Fundação Palmares, que é um órgão extremamente importante para a comunidade negra. Você tem o ministro da Educação, o ministro da Saúde sem nenhuma competência técnica para administrar essas pastas. É o enfraquecimento de todos os avanços que tivemos nos últimos tempos. Quem está agora precisando de auxílio emergencial é a mesma população. E no futuro, esse auxílio emergencial vai virar troca de favores, vai virar troca de voto. Eu faço com que você fique extremamente dependente de mim para depois eu te direcionar para onde você deve ir.

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