Beatriz Abagge, a mãe Celina e mais cinco homens foram acusados pela morte do garoto Evandro Ramos Caetano. Elas confessaram o assassinato sob tortura, em um dos mais notórios casos de erro judiciário no Brasil, que ganhou notoriedade após série “O Caso Evandro”

Por Carolina Avansini, do Portal Firminas, com colaboração de Heloísa Rocha Aguieiras

Foto em destaque: Beatriz e Celina Abagge/Arquivo Pessoal

Elas foram chamadas de bruxas, acusadas de terem sido amantes de homens com quem não se relacionaram afetivamente, sofreram violência sexual e tiveram a experiência da maternidade arrasada pela condenação, sob tortura, por um crime que não cometeram. Por tudo isso, é possível afirmar que Celina e Beatriz Abagge, mãe e filha, condenadas pela morte do garoto Evandro Ramos Caetano, ocorrida em 1992, na cidade de Guaratuba (PR), são também vítimas do machismo. 

Celina e Beatriz Beatriz protagonizaram, ao lado de cinco homens, o caso que ficou conhecido como “O Caso Evandro”. Antes da história ganhar notoriedade por meio do podcast “Projeto Humanos”, de Ivan Mizanzuk, e da série “O Caso Evandro”, produzida pela Globoplay, a história era mais associada às “Bruxas de Guaratuba”. 

O fato de serem chamadas de “bruxas” por si só expõe o viés machista que perpassa o caso. Afinal, na Idade Média, eram jogadas na fogueira sob acusação de bruxaria as mulheres que ousavam desafiar o patriarcado com seus saberes ancestrais ou mesmo pelo atrevimento de realizar grandes feitos sem a companhia de homens, como aconteceu com Joana D’Arc. 

Para comentar sobre como o machismo e a intolerância religiosa influenciaram o caso, as Firminas receberam  Beatriz Abagge, que junto com a mãe Celina lançou neste ano o livro Malleus: relatos de injustiça, tortura e erro judiciário

A obra foi baseada em diários das duas Abagge. Celina começou a escrever ainda no presídio para contar aos netos sobre sua inocência. Já Beatriz escrevia em uma tentativa de entender e lidar melhor com todos acontecimentos. “Minha irmã Sheila leu tudo e organizou. É um livro pesado, com relato das torturas, por isso não deve ser lido por quem tem gatilhos em situações de violência”, avisa. 

A história contada por Beatriz Abagge

Beatriz é funcionária pública, terapeuta ocupacional no Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) de Guaratuba. Incentivada pelo caso, também se formou em direito, mas não conseguiu o registro da OAB mesmo depois da extinção de sua ficha criminal. 

“Outros advogados tiveram a reabilitação na ordem e conseguiram o registro. Atribuo essa dificuldade ao fato de ser mulher”, comenta ela, que se considera uma feminista. “O relatório da OAB me acusa de ser mentora intelectual de um ritual de magia negra. Isso é uma discriminação pelo fato de eu ser mulher”, analisa. 

O podcast “Projeto Humanos”, de Ivan Minzanzuk, comprovou por meio de trechos de gravações – que não apareceram no processo – que os acusados sofreram tortura para confessar o crime. No caso das Abagge, a tortura teve características sexuais. “Não falo porque não gosto de me lembrar, mas obviamente foi machista. Eles (os torturadores) usavam termos chulos. Fui chamada de cadela…”, recorda ela, que preferiu não se estender porque a lembrança provoca muita dor. “Eu e minha mãe nunca falamos sobre isso (as torturas sexuais)… Ela ficou frágil no início e depois se fortaleceu, uma amparou a outra, mas não falamos no assunto porque acabamos revivendo toda a dor”, conta. 

O processo criminal, na visão de Beatriz, traz termos, afirmações e falsas conclusões que reforçam o machismo estrutural que contamina o caso. Ela foi chamada de “amante de Osvaldo Marcineiro” e a mãe foi acusada de ser amante do pai de Diógenes, um dos personagens centrais das decisões que resultaram na condenação. “Eu era solteira e fui chamada de amante. A mulher é sempre colocada nessas posições que a desqualificam. Aos homens ninguém pergunta esse tipo de coisa. A ‘sem vergonha’ é sempre a mulher”, destaca. 

Tatuagem de bruxa eterniza em Beatriz Abagge a história das Bruxas de Guaratuba
Dona de coragem e bom humor admiráveis, Beatriz Abagge tatuou uma vassoura de bruxa no próprio corpo – foto: arquivo pessoal

A própria denominação de “bruxas” reforça o machismo que impregna toda a história. “São duas mulheres e cinco homens, mas sempre dizem ‘as bruxas de Guaratuba’, como se fossemos as culpadas”, conta Beatriz, dona de uma coragem e um bom humor admiráveis. “Tenho uma vassoura de bruxa tatuada”, diverte-se ela, que também tem orgulho da própria trajetória. 

Por ser mulher, ela também considera que foi condenada à maior pena: 21 anos e 4 meses. Os homens Davi, Osvaldo e De Paula foram condenados a 20 anos e 2 meses.

Estado cria Grupo de Trabalho para rever o caso

Após a repercussão da série “O Caso Evandro” a Secretaria da Justiça, Família e Trabalho do Paraná (Sejuf) estabeleceu a formação de um grupo de trabalho (GT) para apurar possíveis ilicitudes cometidas durante o processo. O GT tem como objetivos o estudo do caso para detectar as falhas, o encaminhamento de relatório ao judiciário sobre violações dos direitos humanos e possíveis injustiças e a adoção de novas medidas para proteção das crianças.
Em setembro, Beatriz e Celina Abagge, e três dos homens acusados – Davi Santos Soares, Osvaldo Marcineiro e Airton Bardelli – foram ouvidos pelo GT. Na ocasião, eles relataram as torturas física se psicológicas sofridas para confessarem o crime e durante as prisões. “Hoje eu tenho meus dentes quebrados e o meu estômago inchado. Depois de todas as torturas a que fomos submetidos, não recebemos nenhum tipo de ajuda psicologica. É dificil tratar com isso no meu dia a dia Lamentavelmente ficaram muitas sequelas em todos nós. Não apenas fisicas, mas principalmente psicológicas”, assegurou Beatriz Abagge. (Fonte: Sejuf)

Caso Evandro: injustiças afetam os filhos

As injustiças cometidas contra Beatriz também afetaram seus três  filhos – uma moça e um casal de gêmeos –, que cresceram sob o estigma de ter a mãe e a avó envolvidas na acusação por assassinato de uma criança. Um dos gêmeos, o rapaz, se envolveu com drogas e enfrenta problemas judiciais.

 “Ele foi marginalizado como ‘o filho da bruxa’ e se refugiu em um meio onde foi aceito. Um promotor de justiça chegou a me culpar pelo acontecido, me acusando de não ter sabido educá-lo. Mas a culpa é do estado, que submeteu meus filhos a diversas violências por causa desse erro de Justiça”, questiona.

Além de crescerem como “filhos da bruxa”, as crianças de Beatriz enfrentaram a rotina de visitar a mãe na penitenciária feminina onde ela esteve por 3 anos e 9 meses. “Eles iam me visitar e eram revistados, tinham que tirar a roupa… Eu tentava manter o clima leve, mas na hora de ir embora meu filho chorava, se agarrava em mim. Não estou dizendo que ele é inocente, pelo contrário, está pagando pelos próprios erros. Mas não foi fácil passar por tudo isso”, lamenta. 

Outro preconceito implícito no caso é a intolerância religiosa. Muito embora alguns acusados sejam praticantes de umbanda, as acusações sempre resvalaram para termos preconceituosos como “bruxaria” e “magia negra”. “Eu frequentava o terreiro de Osvaldo Marcineiro e nunca neguei, não tem crime algum nisso, Porém, queriam uma história bombástica para encerrar o caso e inventaram essa ficção de ritual satânico”, avalia.

‘Ivan Mizanzuk é um anjo’

Beatriz Abagge revela o machismo escondido nos detalhes de “O Caso Evandro”
Podcast de Ivan Mizanzuk inspirou a série “O Caso Evandro” – foto: divulgação

Beatriz assumiu uma postura de guerra nas redes sociais, na tentativa de se defender das falsas acusações. E foi assim, por causa da coragem de se expor, que ela conheceu Ivan Mizanzuk. “Eu sabia que um dia alguém ia me ouvir. Ivan é um verdadeiro anjo, pasou muito tempo ouvindo as fitas e conseguiu encontrar as evidências de tortura”, emociona-se. 

Ela conta que sentia muito medo dos torturadores e os anos não conseguiram apagar os traumas. “Eu temia que eles aparecessem e me pegassem novamente, sentia até medo de molhar o rosto, pois lembrava de toda violência. Depois fui recuperando minha coragem. Sei quem são todos eles”, avisa. 

Ativista pelos Direitos Humanos

Toda a história de tortura e sofrimento enfrentada por Beatriz despertou nela uma ativista pelos Direitos Humanos. Um de seus planos atuais é criar a Fundação Aldo Abbage de Direitos Humanos, cuja missão será lutar para que não aconteça com os outros o mesmo que aconteceu com ela e a mãe. 

A ativista também pede que a imprensa seja mais responsável e remete à própria trajetória para mostrar como a mídia pode ser nociva quando trabalha sem ética. “A imprensa atrapalhou muito, pois nos condenou antes da Justiça. Quando fomos para o júri, a opinião pública já estava formada. E, ainda hoje, vejo matérias falando de magia negra no caso”, lamenta. 

Como contraponto, ela volta a elogiar o trabalho de Ivan e presta homenagem à jornalista Vânia Welte, a primeira a defender a inocência dos acusados. Sua série de reportagens intitulada “As Bruxas de Guaratuba”, publicadas no jornal curitibano Hora H, lhe renderam o Prêmio Esso de jornalismo em 1996. 

Os “sete inocentes de Guaratuba”, como são chamados em campanha nas redes sociais, estão buscando revisão criminal para atestar a inocência. “Eu nunca cometi nenhum crime e quero que isso seja reconhecido pelo Estado”, pede. As hashtags usadas para aderir à causa são #seteinocentesdeguaratuba e #ondeestaleandrobossi.

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