Por Beatriz Herkenhoff e Desirée Cipriano Rabelo*

Justo quando eu voltava do doutorado, em 2005, cheia de ideias e projetos para minha vida de docente na universidade, conheci a professora Desirée. Ela, por sua vez, do Mato Grosso do Sul, com uma longa experiência em comunicação e mobilização com os movimentos sociais

Logo descobrimos nossas afinidades teórica, política, pedagógica e religiosa. Desse encontro nasceu uma rica amizade. Como professoras do Curso de Serviço Social, realizamos inúmeras ações de pesquisa e de extensão, onde ousamos vivenciar os ensinamentos de Paulo Freire em diferentes disciplinas e linguagens. Organizamos eventos, articulamos nossas disciplinas e desenvolvemos um projeto conjunto com alunos de outros cursos.

Naqueles tempos de mobilização para o programa “Fome Zero”, reunimos líderes comunitários, professores e estudantes de várias áreas para discutir “Que fome é essa”? Um debate que se espalhou pelo campus estimulando competências, conhecimentos e muito prazer de ensinar-aprender.

Ao aposentar-se, Desirée mudou-se para Barcelona, Espanha. Mas, mesmo distantes, seguimos unidas por laços de confiança e solidariedade. Viramos confidentes, cúmplices nos momentos de dor, alegrias e conquistas. Em 2019, quando fui visitá-la, ela organizou passeios inesquecíveis. Com seu olhar sensível, mostrou-me belezas que passam desapercebidas pelos turistas em geral.

Dentre elas, destacaria as formações humanas que se assemelham a torres, os “Castellers” (no idioma local), uma tradição da Catalunha que remonta ao século XVIII. Com diferentes formações, as torres podem alcançar até dez andares.

Trata-se de uma bela metáfora do trabalho em equipe: exige esforço, colaboração, confiança, concentração, força, equilíbrio, entrega, atenção e coragem entre todos os envolvidos.

Os últimos a subir na torre são duas crianças que fazem um aceno lá do alto. As apresentações dos Castellers acontecem em cerimônias festivas da cidade e nos bairros onde se organizam. Há uma saudável competição entre as várias “colas”, como são chamadas. O que não impede de quando uma delas busca erguer uma torre mais complexa, os companheiros dos outros grupos ajudem espontaneamente.

Quando, ao longo da construção da torre humana algo falha, todos descem e recomeçam – quantas vezes for necessário. Um esforço sempre aplaudido. 

E foi numa manhã de domingo, numa pequena praça residencial, que vi pela primeira vez e me emocionei com os Castellers. Chorei muito, impactada com essa experiência comunitária transmitida de geração em geração e que envolve todas as idades.

Menciono os Castellers para ilustrar o tema dessa crônica escrita a quatro mãos: quando temos projetos e objetivos claros e colocamos o desejo como eixo central, tudo é possível. Em nível coletivo, mas também no plano individual.

E a conversa de hoje é justamente sobre encerrar ou ressignificar projetos. Ou seja, viver com qualidade, com sonhos, sem medo de ousar e ser feliz. Para que isso aconteça é preciso ter a coração e a mente abertos. E bons amigos também são imprescindíveis.

Ao longo dos anos, Desirée e eu cultivamos nossos laços. Durante a pandemia, escolhíamos um filme para assistir e, de 15 em 15 dias, fazíamos um debate, por videochamada, cada uma desde seu país. Momentos riquíssimos de análise dos filmes e partilha da vida.

Recentemente, Desirée me enviou uma mensagem dizendo que vivia um turning point. Originária do contexto empresarial, a expressãosignifica ponto crítico de inflexão de tendências.

Em relação ao crescimento pessoal, turning point é um momento de mudança de vida.

Em nossas trocas, ao analisar as muitas conquistas que realizamos, vimos que se deve ao equilíbrio entre ter um desejo, transformá-lo em projeto e construir cotidianamente as bases desse projeto.

Somos pessoas de fé e entregamos nossos sonhos e desejos nas mãos de Deus. Acolhemos as surpresas que a vida nos oferece. Porque muitas vezes, o projeto não dá certo. Seja o do casamento, o do novo trabalho, o da mudança.

Diante dessa situação, algumas pessoas simplesmente param e ficam lamentando suas perdas. Outras, “levantam, sacodem a poeira e dão a volta por cima.” Esta última postura, descobrimos, é comum a nós duas.

Os projetos exigem um roteiro predeterminado, mas é preciso considerar que a vida traz coisas inesperadas. E aí entra a sabedoria e a maturidade para lidar com o novo que se apresenta a cada amanhecer. Ou para identificar quando o “velho” já se esgota, quando é o momento de mudança.

Tanto eu como Desirée tínhamos um projeto pós-aposentadoria – para usar aqui uma referência temporal e que quase sempre significa crise.

Desirée tinha um projeto de aposentadoria de curto e médio prazo que era viver no estrangeiro. Isso consumiu grande parte do seu tempo e energia e incluiu sua família.

Mudou para Barcelona em 2018. Desde então enfrentou obstáculos, mas construiu estratégias de adaptação, de superação. Envolveu-se em projetos que ampliaram suas amizades, seu conhecimento e também compromisso com a comunidade migrante local. Atuou nas áreas acadêmicas, cultural, social, religiosa e até na política local.

Aperfeiçoou o castelhano e está aprendendo catalão. Sua avaliação: foi um processo de adaptação que durou cinco anos. Agora ela se questiona: quais novos projetos preciso construir?

Às vésperas de completar 66 anos, Desirée acumulou incontáveis experiências e conheceu pessoas maravilhosas na Espanha. Está contente com as escolhas que fez, mas, agora, sente-se inquieta. Diante da pergunta se lhe faltou um projeto pós-aposentadoria, ela depois de consultar suas memórias, é categórica: “Não!”. Apenas sente que cumpriu uma etapa e que há mais possibilidades a explorar.

Num momento da vida que o tempo se torna cada vez mais precioso, ela admite: “Hora de descobrir o que gosto de fazer de fato. O que me dará prazer e um novo sentido para minha existência nesta etapa de minha vida?”.

Algo que aparece neste diálogo, agora de múltiplas vozes e sinais, é a importância das pausas. Do perigo de cairmos na rotina, deixamos de atribuir sentido ao que fazemos. Também surgem questões sobre os legados que queremos deixar para nossos descendentes e para a humanidade. Mas isso só acontece se estamos plenamente conscientes do que queremos fazer.

Para muitos, essa inquietude pode ser incômoda. Parece muito mais fácil, a la Zeca Pagodinho, deixar “a vida me levar”. Mas alguns têm necessidade de sentir-se sempre em movimento e fazer a diferença.

Dialogando agora sobre esse novo turning point de minha amiga, vejo como, muitas vezes, também fui provocada a colocar novamente em pauta meus projetos, sonhos e desejos.

O fato de ter me divorciado três anos antes de me aposentar e de meu filho único ter-se mudado para Salvador, obrigou-me a pensar sobre o futuro, avaliar e fazer planos. Assim, quando parei de trabalhar, já tinha uma vida movimentada.

Passei a viajar pelo Brasil, América Latina, Ásia e Europa. Articulei grupos de amigos do Científico, do Serviço Social, das mães da Monteiro Lobato, do Carnaval, do Bora (para dançar e ir ao cinema) e a Comunidade Ambiental – um grupo de espiritualidade que dá um sentido à minha vida.

Morando sozinha, passei a receber muitos amigos em Vitória, virando “guia turística”, explorando com eles cada recanto, parques, praias, museus, igrejas e bares. Também me abri para viver o amor, conhecer pessoas interessantes que deram vida e plenitude para minha aposentadoria.

Mas, a vida é dinâmica, o que planejara também havia sofrido transformações. Naturalmente fui ressignificando os meus quereres. Uma grande mudança foi o meu reencontro com a escrita que estava adormecida.

Aos poucos, as crônicas esporádicas passaram a regulares e logo reestruturei o meu projeto incluindo a publicação de um livro. Já estou organizando o terceiro livro e vivo uma experiência fascinante de partilhar ideias com meus leitores.

Quando contei à minha terapeuta sobre a mudança de Desirée para Espanha, ela observou: “Sua amiga sustenta o seu desejo. Não importam os obstáculos, ela corre atrás dos seus sonhos”. Agora, ouço da própria Desirée: “Minha história é muito parecida com a sua. Você também focou nos seus objetivos, direcionou suas ações alimentadas pelo desejo.”

Concluímos que estas buscas não podem ser solitárias, mas compartilhadas. Porque a pergunta mais importante talvez seja: onde deixar a minha pegada, a minha contribuição para a humanidade?

E você? Também anda inquieto e não sabe por quê? Talvez seja o momento de encerrar etapas e construir novos projetos.

E quando não der certo, tudo desabar, lembremos dos Castellers recomeçando. E os aplausos recebidos por sua persistência.

Também não se esqueçam de buscar amigos que estejam abertos a este diálogo. Na beleza das palavras de Adélia Prado: “Agora que o destino do mundo pende do meu palpite, quero um casal de compadres, molécula de sanidade, pra eu sobreviver.”

*Beatriz Herkenhoff é assistente social. Professora aposentada do Departamento de Serviço Social da UFES. Com doutorado pela PUC-SP. Autora do livro: “Por um triz: Crônicas sobre a vida em tempos de pandemia” (2021) e “Legados: Crônicas sobre a vida em qualquer tempo (2022)

*Desirée Cipriano Rabelo é jornalista, pesquisadora e professora aposentada da UFES, vive atualmente em Barcelona onde atua como coordenadora de comunicação da Associação Casa da Gente Brasil-Catalunha

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11 respostas para “Sobre finalizar ou ressignificar projetos de vida: diálogo entre duas amigas”

  1. Agradeço a oportunidade de partilhar a experiência, reverencio a amizade com Beatriz e, pie fim, aplausos para a diagramação final!

    1. Avatar de MARIA BEATRIZ LIMA HERKENHOFF
      MARIA BEATRIZ LIMA HERKENHOFF

      Concordo que a diagramação final ficou linda. Parabéns para a rede lume de jornalistas. Gratidão Desirée por sua amizade que me faz crescer, parar para refletir sobre a dinâmica da vida e encontrar novos caminhos

  2. Ótimo texto. Acompanho desde Barcelona e vejo que amizades como de Desirée e Beatriz deveriam ser parte de nosso cotidiano. Não importa a distância. O importante é compartir idéias e sonhos.
    Parabéns às duas.

    1. Avatar de MARIA BEATRIZ LIMA HERKENHOFF
      MARIA BEATRIZ LIMA HERKENHOFF

      Gratidão Euler. Você é parte importante desta amizade. Sempre cuidando, acolhendo, incluindo e alegrando. Fazendo pratos maravilhosos que possibilitam a riqueza das trocas

  3. Avatar de Maria Celeste Lima de Barros Faria
    Maria Celeste Lima de Barros Faria

    Beatriz e Desirée, parabéns pela bela, sensível e frutuosa amizade!
    Sim, é verdade que o desejo faz acontecer, no entanto, é importante saber que nosso inconsciente não tem juízo de valor, não distingue bom ou ruim, belo ou feio etc. Há que saber o que desejar pois ele, o desejo, se cumpre!!

  4. Avatar de MARIA BEATRIZ LIMA HERKENHOFF
    MARIA BEATRIZ LIMA HERKENHOFF

    Excelente feedback Celeste. Temos que saber o que desejar para que o desejo se cumpra. Que a terapia sempre contribua com esse processo de busca, gratidão por sua presença em minha vida

  5. Oi, Beatriz, que lindo texto e como nos identificamos nesse turning point!

  6. Avatar de rosemari gonçalves
    rosemari gonçalves

    Em tempo, os castellers são uma metáfora da vida!

    1. Avatar de MARIA BEATRIZ LIMA HERKENHOFF
      MARIA BEATRIZ LIMA HERKENHOFF

      Gratidão pelo feedback Rosemari. Importante vivermos o Turning point. Ter coragem de dar uma pausa e conversar com nossos desejos mais profundos. Ressignificar a vida e os projetos com coragem. O medo faz parte desse processo, mas como você disse, o exemplo dos castellers nos motivam e dão coragem. Vamos em frente!

  7. Eis aqui uma bela lição de vida. Beatriz, esse dínamo de astral elevado, alegria de viver é sempre pronta a estender a mão, junta-se a sua amiga Desirée para tocar num tema sempre palpitante da vida de todos nós: como viver o amanhã, após o casamento, a aposentadoria, e as mudanças de vida, como se reinventar e seguir em frente. Muito bom, sim.

  8. Avatar de MARIA BEATRIZ LIMA HERKENHOFF
    MARIA BEATRIZ LIMA HERKENHOFF

    Sou muito grata Alcir pela forma positiva como você interpreta o meu jeito de ser e viver. Sempre me estimulando a ir em frente na busca do Bem viver, da partilha do Amor e da solidariedade. E Desirée é uma amiga que me permite parar para ouvir o desejo mais profundo. Movidas por essa escuta podemos ressignificar a vida e recomeçar, não importa a idade.

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